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Maria Brás Ferreira

228. Bernardo Salgado, Do Soneto I ao Soneto 40

228. Bernardo Salgado, Do Soneto I ao Soneto 40

Maria Brás Ferreira

Do Soneto I ao Soneto 40 trata-se, como o título indica, de um conjunto de quarenta sonetos que Bernardo Salgado reúne agora em livro, após ter produzido envelopes de dez sonetos cada — Cadernos A, B, C e D ainda disponíveis neste formato —, publicações da chancela da 14 Versos, editora fundada pelo autor e por Joana Salgado. O soneto é uma forma lírica que conheceu ao longo dos séculos uma série de variações, como se fosse, por si, um medidor do tempo e do espaço, medidor da circunstância mais aparentemente insignificante, da linguagem mais privada, até se tivermos em conta o modo avulso e direccionado em que estes textos tradicionalmente se distribuíam. Ora, a escrita e a publicação de sonetos hoje produzem invariavelmente um efeito de suspensão do tempo ou, na melhor das hipóteses, a actuação da força furiosa de um contra-tempo. Um que se prolonga, todavia, além do incidente meramente ocasional e contingente para constituir uma carta-postal a chegar a alguma parte e que, tratando-se de um projecto editorial e autoral, detém um carácter colectivo e público sobre o qual importa reflectir. São textos que visam, com efeito, ser lidos, escutados e respondidos. Poemas que intentam ir além de uma aparição reprodutível, de uma publicidade imediata e descartável, excedendo os eventos em que tantas vezes a literatura (lamentavelmente talvez já nem como palavrão este termo incomode) se acha hoje confundida, obliterada e, afinal, desmerecida. Um acidente que, assim, detenha um pai, criador assumido, com a sua assinatura responsável, o cunho dessa espécie de orgulho condizente com a árdua faina de um ofício que se ama. De tudo isto é feito o livro — a ideia e o ideal de publicação — de Bernardo Salgado. Não se trata, pois, tão-somente de reconhecer, pelo formato do envelope que precedeu o do livro, o indício e o signo do diálogo e da correspondência. O envelope é já parte do livro, tal como os gestos e a vida são parte da obra por vir. Era, assim, já de obra que se tratavam os envelopes, o que nos conduz a um aspecto que parece fundamental para a poética de Salgado: a indistinção, aparentemente tão natural quanto louvável, entre a vida e a poesia, a fala e o verso (o autor faz regularmente leituras dos próprios sonetos), o escrito e o rasurado que a regra impõe, o que é endereçado a um destinatário particular e o que se publica e distribui por livrarias para que qualquer pessoa o leia e, no limite, o extravie. Também os acasos e os malogros são particulares, excepcionais e intransmissíveis no modo como penetram o real, alterando-o, obrigando-o a investir-se numa nova ordem. Assim, se a vida é a matéria bravia que a obra pode ou não enformar, a primeira é na segunda surpreendida necessariamente enquanto coisa outra, matéria transformada, transfigurada (porque convulsa, em busca de sentido) e partilhável: «Uma cenografia bem quieta/ Deixando que outros Vos rodem também» (12). Aquele que diz — são sonetos ditos, no limiar em que a voz é induzida à fisicalidade de uma boca que mexe e à melodia de um som que irrompe — ser a «Vossa Cobaia Milagrosa», vossa, isto é, dessa «Voz Todo-Poderosa», começa por instaurar um regime particular, senão mesmo excepcional, entre duas entidades, para tornar partilhável e disponível aos outros essa mesma figura abstracta e ideal que determina a sua existência e função. A partilha decorre de uma vontade de atenuar a sorte, o que não se faz por qualquer espécie de cálculo ou medição, mas pela soma e pelo acrescento indefinido de mais ocasos, de outra(s) sorte(s) de sortes: «Que outros vomitem Vosso Vaivém: / Abrandai e sossegai minha Roleta.» (idem).

223. Annie Dillard, Ensinar uma Pedra a Falar

223. Annie Dillard, Ensinar uma Pedra a Falar

Maria Brás Ferreira

Mais do que um ensaio sobre a relação - de contornos e ambição evolucionistas - entre o Humano e a Natureza, como num instante preliminar se poderia supor, Ensinar uma Pedra a Falar, de Annie Dillard, recém-editado pela Antígona, numa tradução de Inês Dias, constitui um texto sismógrafo acerca da experiência assombrosa que distancia, mas igualmente coloca numa tensão afectiva-criativa, os dois planos existenciais - entenda-se, plano cultural e natural -, intervalados a partir de um princípio ficcional, por oposição a um princípio metódico-científico. Seria, porventura, algo cínico procurar definir uma totalidade natural com base na experiência que o ser humano da mesma natureza retira, ainda que à primeira reconhecendo o estatuto da primordialidade. E, todavia, parece haver uma pulsão, essa, já referida, propriamente narrativa e ficcional, que impele o sujeito pensante a conceber o meio envolvente como uma dádiva para as suas projecções inventivas, criações imaginárias, ciente dessa invenção posterior, e não apenas como universo secundarizado, conforme a um ponto de vista solipsista, viciado e limitador. São as palavras - e neste livro quase tudo, ou pelo menos o melhor, pertence à ordem texturada da dicção - exemplos pontuais de uma relação imaginativa e, dessa feita, à partida desvirtuada, isto é, sem praticabilidade alguma que não constitua o seu próprio desvio, não obstante por isso mesmo se trate de uma relação vital. Ou para cujo reconhecimento não importa tanto a asserção de uma verdade, mas sobretudo o consolidar, a rimar com essa espécie de liberdade conquistada, da experiência, e desta traduzida em palavras, como memória futurante.

216. Jean-Pierre Martinet, A Grande Vida

216. Jean-Pierre Martinet, A Grande Vida

Maria Brás Ferreira

De Jean-Pierre Martinet, autor inédito em Portugal, e com tradução de Diogo Paiva, foi recentemente publicado, pela editora Cutelo, A Grande Vida. Um romance que não pode ser outra coisa senão romance, ainda que a sua extensão curta aponte imediatamente para o género da novela, uma vez que o último reduto da sua expressão e intempestividade reside no mais cerrado dos sarcasmos. Por um virtuosismo propriamente romanesco, esse de fazer associar o que está votado a ser escatologicamente baixo, vil, a um tom grandiloquente, por efeitos cénicos produzidos ao longo do texto, ao leitor quase apetece dizer tratar-se do romance, por excelência, da miséria, e do abjecto, atribuindo-lhe um valor não só singular, como exemplar. O sarcasmo que inequivocamente acentua o título prescreve, de imediato, um tal recurso estilístico (é um texto pouco dado a virtuosismos literários) — é precisamente assim que o título se valoriza e adquire um tom próprio e excepcional —, preferindo-se uma escrita terrivelmente objectiva, sóbria, mesmo nos momentos tangenciais da auto-depreciação ao ponto da escatologia, no duplo sentido do termo. Um descaramento incisivo, como o parto «sobre si mesm[o] como um feto monstruoso» (Martinet, 39), na descrição do sujo, do mau e do desprezível. É a clareza discursiva que imprime o último reduto da miséria: a concessão, a pena (no sentido da sentença, jogando com esse outro do tema cristão da piedade) e o crime últimos, da piedade como linguagem esgotada e/ou iconologia que já não pode dizer-nos respeito. A piedade remetida à medida de um desajuste em face da obscenidade intrínseca à própria vida, até à indiferenciação e ao absurdo caricaturais, em sinal dos quais irrompe o riso como o ânimo em negativo de uma vontade distorcida ou simplesmente ausente: «Foi por volta do fim do mês de Agosto que o drama rebentou. Digo drama, mas não é a palavra certa. Não existe drama entre nós, senhores, nem tragédia, apenas burlesco e obscenidade. Não somos felizes, mas fartamo-nos de rir. Com sorrisos amarelos, claro, mas enfim.» (idem, 41).