Sofia A. Carvalho
Cena 1, plano vertical, acção: No início era a Linha. Poderia ser este o fotograma da claquete inicial em Durante o Fim, documentário com argumento e realização de João Trabulo (cuja première, em Turim, data de 2003 e a estreia nacional de 2011, embora o início das filmagens remonte aos anos de 1999/2000) sobre o ofício linear e cerebral de Rui Chafes. Digo: a proposta fílmica de Trabulo não só recai no acompanhamento próximo dos matizes de uma linha de ferro negro a gravitar sobre um espaço, espécie de continuum metalúrgico, poético e telúrico que acompanha o trabalho artístico de Rui Chafes, como também marca um ponto de encontro entre duas linhas fortes e afinadas — as de forjadores de mundos.
Sofia A. Carvalho
Inquietante e desarmante. Pode ser esta uma primeira tentativa para captar a atmosfera de Ensaio para uma cartografia, de Mónica Calle, espectáculo de abertura do Lisbon & Sintra Film Festival’17 no Centro Cultural Olga Cadaval, uma produção da Casa Conveniente e Zona Não Vigiada, e co-produção do Teatro Nacional D. Maria II. Tendo sido ideado em 2013, aquando do encontro de Mónica Calle com a bailarina e coreógrafa Luna Andermatt, este projecto foi levado a cena em diferentes regiões de Portugal, conhecendo uma versão actualizada, estreada no Teatro Nacional D. Maria II, no primeiro trimestre de 2017.
Sofia A. Carvalho
Era uma vez. E quem não se lembra da voz suave e hipnótica da avó a contar mais uma história para adormecer à sua neta de eleição? Eu não. Não sendo a vida um conto de fadas, e à semelhança do que este último esconde, aquela é feita de uma desarmante perversidade. Pois bem: o filme documental Paula Rego, Secrets & Stories, realizado pelo filho Nick Willing — exibido pela primeira vez no dia 25 de Março na BBC2, e cuja antestreia nacional foi a 4 de Abril na Fundação Calouste Gulbenkian, contando aí com a presença do realizador e da artista —, retrata isso mesmo. O conto de fadas em Paula Rego assume o tom de revolta de uma mulher-cão: contradictio in terminis assumida pela pintora, que surge retratada pelos filhos como um ser estranho — anjo perverso e vingativo — que possui algo de belo, mas talvez por isso intocável e intangível.
Sofia A. Carvalho
Sim, é possível que hoje já não existam canções de amor. É possível que o medo trave o mundo e os seus encantamentos. É possível que nada se revele superiormente belo e triste. É possível que os jericos deixem de ver a Deus. É possível que cessem os momentos de graça e abunde a estupidez. É possível que os anjos não se revoltem e os demónios jejuem. Mas nada disto acontece em One More Time With Feeling, documentário de Andrew Dominik sobre o processo de gravação de Skeleton Tree (2016), o mais recente álbum de Nick Cave. Esta espécie híbrida de documentário, que chegou em DVD a Portugal a 7 de Abril do presente ano com o acréscimo de três curtas-metragens, exige, pela sua natureza peculiar, uma nova abordagem: o que me importa explicitar e explorar é, de facto, a sua natureza complexa e contraditória. Fá-lo-ei a partir das noções de amor e protesto, dois aspectos que percorrem toda a produção musical de Nick Cave e que surgem negligenciados pela crítica.