Tiago Ramos
No prólogo de Letter from an Unknown Woman (Max Ophüls, 1948), Stefan Brand é desafiado para um duelo no qual não tem a intenção de participar. O seu plano é fugir da contenda. Porém, o seu mordomo, John, entrega-lhe uma carta por assinar que o fará encarar as suas responsabilidades. Stefan abre o envelope, retira a carta e antes de a começar a ler lava o seu rosto. Há uma ênfase no gesto de limpar a vista. De seguida, a personagem aproxima-se da secretária e ilumina a divisão em que se encontra, adensando, deste modo, a sequência de acções que figuram a ideia de que Stefan está a preparar-se para vislumbrar o seu passado com clareza. A leitura da carta por parte de Stefan convoca a voz de quem a escreveu. Esta é uma convenção no cinema, a de que a leitura de um documento desponta na mente do leitor a voz de quem o escreveu. A questão é que Stefan desconhece, naquele instante, a identidade da remetente, porquanto a carta não está assinada, o que desestabiliza esta convenção narrativa e confere à voz feminina que enuncia o texto uma qualidade misteriosa. Lisa, a mulher que redigiu a carta e se dirige a Stefan, manifesta-se primeiro enquanto uma voz sem corpo. A sensação é de que as palavras de Lisa, às quais temos acesso por meio da voz-sobreposta, são o murmúrio de um fantasma. As palavras que escreveu confirmam a sua condição fantasmática: «Quando leres esta carta, talvez já esteja morta... Se isto chegar até ti, saberás como me tornei tua quando não sabias sequer quem eu era ou sequer que existia.»[1]
Tiago Ramos
Em 1543, Andreas Vesalius publicou De Humani Corporis Fabrica, um atlas anatómico que contribuiu para o avanço da medicina e para a institucionalização da prática da dissecação, na época um exercício proibido pelas ordens religiosas europeias. O compêndio está dividido em sete livros, cada um dedicado a uma parte do corpo humano, como sejam o sistema digestivo ou circulatório. O texto é acompanhado de xilogravuras que representam a parte do corpo alvo de investigação. No entanto, embora as gravuras tenham o desígnio científico de retratar o interior do corpo humano tal como este nunca tinha sido retratado, as ilustrações de Vesalius também têm uma preocupação artística. As representações são adornadas de elementos paisagísticos e os corpos são ilustrados em poses simbólicas. Esses traços não possuem qualquer utilidade científica, antes apontam para uma preocupação estética. Então, conclui-se que existe uma união entre o engenho artístico e científico. Sem a conciliação desses desígnios aparentemente opostos a obra de Vesalius não existiria com os contornos que tem, dado que foram os progressos verificados durante o Renascimento, no que à representação pictórica diz respeito, que lhe permitiram retratar o corpo humano com precisão científica.
Tiago Ramos
When my father passed, I wanted nothing more than my mother’s happiness. For what kind of man would I be if I did not help my mother? If I did not save her?
A epígrafe corresponde à frase que serve de preâmbulo à mais recente longa-metragem de Jane Campion, The Power of the Dog (2021). A frase é enunciada, por meio da voz-sobreposta, ainda no decorrer da sequência de créditos inicial. A figura responsável pelo enunciado é Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee), um jovem abúlico que vive com a sua mãe num povoado isolado nas planícies de Montana, em 1925. O facto de ser Peter quem tem o controle da voz-sobreposta é um dado relevante, na medida em que sinaliza, antes de a acção começar, qual é a personagem que tem poder sobre o discurso fílmico. Desta forma, a narração preambular cumpre vários propósitos. Por um lado, estabelece Peter na qualidade de narrador, o que lhe confere um estatuto de autoridade no contexto da economia narrativa. Por outro, delineia, de forma lacónica, as motivações do herói da trama – isto é, proteger a mãe e cumprir-se enquanto homem.
Tiago Ramos
Na protocolar cena de créditos iniciais, à medida que os artistas pertencentes à produção de Gaslight (1944), de George Cukor, são elencados, no plano de fundo conseguem-se distinguir as sombras de duas pessoas, sendo que uma aparenta estar a estrangular a outra. Assim sendo, o primeiro plano a que o espectador tem acesso, ainda antes de a ação começar a desenrolar-se, prenuncia o assassínio de Alice Alquist, uma cantora de ópera reconhecida mundialmente, que é encontrada morta na sua residência, na Praça Thornton, em Londres. De igual modo, o engenho de sombras estabelecido pelo plano inaugural figura um dos motivos estruturantes da intriga: a dependência ontológica. Paula Alquist (Ingrid Bergman), a sobrinha da falecida cantora de ópera, tal como uma sombra projetada sobre uma superfície, afirma-se enquanto desdobramento ontologicamente vazio que está dependente de uma entidade que lhe dá realidade: a tia assassinada. Paula é a sombra da tia, uma figura ela própria espectral, que nunca surge em cena, uma vez que os primeiros passos da intriga são dados na sequência da sua morte trágica.