251. Jorge de Sena, Arte de Música

251. Jorge de Sena, Arte de Música

Hugo Miguel Santos*

É bem possível que uma recensão acerca da reedição de uma obra publicada há mais de cinquenta anos, como é o caso de Arte de Música (1968), esteja fatalmente condenada ao triste fado da redundância. Podemos sempre investir algumas linhas a louvar a decisão da editora Assírio & Alvim de tornar novamente disponíveis os poemários, como é regra de praxe, daquele que é não só um dos maiores poetas da literatura portuguesa, como um dos críticos de poesia mais decisivos da nossa humilde história — assim, acompanhando a grandiloquência do discurso mercantilista. E poder-se-ia dar nota da decisão certeira de os fazer acompanhar de ensaios introdutórios de críticos e académicos contemporâneos, procurando assim revitalizar a recepção crítica de um autor que sempre se esforçou por ser lido e entendido, sem jamais cair no didactismo.

De facto, num país de poetas como alegadamente é o nosso, não deixa de ser surpreendente que sejam poucos aqueles investidos em pensar criticamente sobre as virtudes e os defeitos que sempre existem em qualquer poesia, seja qual for a época ou o território. Se nos limitarmos ao século XX, lembramo-nos forçosamente de três nomes: Pessoa, Sena e Magalhães. Poder-se-ia somar a este elenco o único livro que reúne a prosa crítica de Ruy Belo; refiro-me a Na Senda da Poesia (1969)[1], ou outros livros de género híbrido, como O Aprendiz de Feiticeiro (1971), de Carlos de Oliveira ou Photomaton & Vox (1979), de Herberto Helder, cujo pendor reflexivo em torno da feitura do poema continua a ressoar até aos nossos dias. Por certo, o leitor atento será capaz de apontar mais dois ou três nomes de poetas que também escreveram crítica, ou de um ou dois críticos cuja poesia talvez mereça ser relida com cuidado.

O caso de Sena é paradigmático: não se tendo contentado em escrever alguns dos poemas mais singulares da nossa tradição, deixou-nos textos fundamentais sobre o Cancioneiro, Camões, Sá de Miranda, Bernardim, Pessoa, Cinatti e tantos outros contemporâneos de várias épocas e geografias. Além disso, traduziu e introduziu autores de várias latitudes em inúmeros ensaios, separatas e antologias. Sobre a sua crítica, aliás, foi editado recentemente um volume com contributos muito relevantes pela Biblioteca Nacional, organizado por Joana Matos Frias e Joana Meirim[2]. Apesar das constantes queixas em vida nesse sentido, não têm faltado críticas e comentários à obra de Sena que, infelizmente, tarda em alcançar um público mais amplo e amador. Mais uma razão para reiterar o elogio à reedição de Arte de Música, prefaciada por Jorge Vaz de Carvalho, um dos maiores conhecedores da obra seniana — para retomar a tónica publicitária.

Regressando ao início deste texto: por que razão voltar a escrever a propósito de um poeta que procurou «(...) sentar-se à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro/ (...) a escrever como se escrever fosse respirar» preso «(...) à mesa onde os homens comem.»?[3] Antes de mais, para notar uma tendência comum na exegese de textos assinados por autores como Sena que reúnem na mesma pessoa «o poeta e o crítico» — como o próprio se afirma no título de um depoimento publicado em Dialécticas Teóricas da Literatura —, interpretando os seus poemas como aplicações ou exemplos das suas teses e argumentos. Destarte, a crítica destes poetas parece servir como uma espécie de caixa de ferramentas que nos ajuda a desmontar as peças constituintes dos poemas. Quando se lê um poema como o já citado «Os Trabalhos e os Dias», somos levados a tratá-lo como exemplo prático da poética do testemunho. E o mesmo acontece, entre tantos outros exemplos, com a teoria da impessoalidade em T.S. Eliot; sobejamente apresentado como um dos «mestres» do autor de O Reino da Estupidez (1961), «talvez porque era então o nome moderno mais mencionado e conhecido» da tradição inglesa, como o próprio Sena refere.[4]

Descontada a causticidade de Sena, estavam bem avisados os críticos que detectaram precocemente o vínculo entre os dois poetas, como se pode perceber inclusivamente pela utilização que Sena faz de um conceito eliotiano para explicar a natureza das suas Metamorfoses:

Os ingleses nunca puseram em causa a grandeza lírica de Wordsworth ou de Shelley filosofando em verso (...). O mesmo se dirá da poesia da Itália que nunca se envergonhou, nem mesmo com Croce, de que Dante ou Petrarca fossem poetas inteligentes e cultos.

Que a incultura artística ou geral dos nossos literatos (e não é menos incultura o saber-se apenas de literatura «moderna»), ou a incultura literária dos nossos artistas e críticos de arte, sejam, com as honrosas excepções da praxe, regra, eis o que não pode significar que uma pintura, uma escultura, um monumento, não sejam, tão legitimamente como uma paisagem ou uma dor de dentes, o «objectivo correlativo» de um estado de alma, e pretexto de meditação poética.[5]

Como defende Jorge Vaz de Carvalho, «esta poesia é uma arte de conhecer e criar conhecimento» que «aprofunda a experiência de escutar ao transfigurar verbalmente o fenómeno musical que comunica».[6] É precisamente neste sentido que aponta Sena quando alia a grandeza lírica à dimensão filosofante de poetas maiores das mais diversas tradições. Não é de estranhar que Sena procure defender a dimensão filosófica da sua poesia. E muito menos que sejamos levados a concordar com a crítica que faz da sua própria poesia.

Num outro texto dedicado ao soneto de Camões, «Erros meus, má fortuna, amor ardente», Sena refere-se à ideia de «correlação descritiva», ecoando novamente o objectivo correlativo de Eliot:

Camões não visa impressões fugidias e momentâneas que lhe sejam causadas pela meditação sobre a sua vida. Camões não pretende descrever o comportamento do objecto dessa reflexão, que a sua vida é, mas caracterizar rigorosamente as eventualidades desse objecto de pensamento. A existência profunda da sua meditação não lhe obnubila o desejo de ver a sua vida por todos os lados, de examiná-la de fora do contexto existencial.[7]

 Torna-se tentador substituir o nome de Camões por Sena e a vida de Camões, enquanto objecto, pela arte, para compreender melhor o movimento destes poemas de Arte de Música, que são encarados da mesma forma que os poemas incluídos em Metamorfoses (1963): enquanto meditações poéticas em torno do sentido de determinados objectos estéticos. Não se trata, portanto, de tentativas «de esvaziamento de sentido pela linguagem poética», como Maria Brás Ferreira defende na sua resenha a esta reedição.[8] Esta recensão é, aliás, reveladora do perigo a que se sujeitam os autores que pertencem à já referida categoria de poetas-críticos. Se o aparato crítico elaborado por um poeta serve muitas vezes para ilustrar a interpretação de um determinado livro ou poema, facto que não configura nada de substancial per se, muito menos preocupante, torna-se particularmente incompreensível porque se deve intuir «(...) que uma frase escrita (...) a respeito de “Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena”» se pode ou deve estender aos restantes poemas incluídos em Metamorfoses e Arte de Música.[9]

É a partir desta intuição que Ferreira se refere a este livro como «um projecto falhado», enquanto se permite tecer considerações relativamente misteriosas como as seguintes: «a transcendência propriamente musical não se atém apenas a uma superioridade de espírito», «a natureza holística da música coincide com a sua autonomia relativamente a quaisquer teorias que lhe recobrassem a vitalidade» ou «os pares dicotómicos — prova de densidade semântica, prenhe de ideias sem prova, só sinais — que vão construindo a rede semântica fundamental desta poética»[10], cuja assertividade e opacidade parecem apontar para uma escrita quase alquímica, essa sim à procura de um certo género de «esvaziamento de sentido», que a recenseadora gostaria de ter achado na obra recenseada.

Os «Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena» são, de facto, um conjunto de poemas singularíssimo não só na obra de Sena, como na nossa poesia em geral. A partir de resquícios de vocábulos vindos do latim, do grego, mas também do português mais arcaico[11], Sena consegue criar um artefacto verbal que se furta a uma interpretação imediata do sentido semântico, convocando a nossa atenção para a importância melódica da própria língua: «Que vúlcios defuratos, que inumana/ sussúrica donstália penicela,/ às trícotas relesta demiquela,/ fissivirão bolíneos, ó pimana»[12]. Não se trata, portanto, de encontrar uma correlação entre a poesia e a música, nem sequer de mimetizar processos entre artes, como sugere Maria Brás Ferreira; mas de acentuar a importância prosódica da poesia, em «Quatro Sonetos», e de utilizar objectos artísticos para meditar filosoficamente em verso, em Arte de Música, aproveitando ainda para recolectar lembranças vindas de um passado trespassado pela música, como se percebe logo a partir dos primeiros versos do livro:

Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música.
Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano
era, para mim, sem distinção entre a Viúva Alegre e Mozart,
o grande futuro paralelo a tudo o que eu seria[13]

Há, no entanto, uma intuizione introversa a ter em conta, na supracitada recensão, que merecia ser mais bem desenvolvida. Por mais que «o elogio à música» não sirva para afirmar a suposta «menoridade da linguagem verbal» ou, como repete no já referido exemplo alquímico, para apontar «um dedo (...) à singeleza musical a que a poesia será invariavelmente preterida», a recenseadora acaba por revelar, involuntariamente, uma das relações fundamentais nestas metamorfoses senianas, isto é, que a poesia e a música são inevitavelmente autónomas e distintas, por mais que as artes possam, e devam, pensar-se e inspirar-se mutuamente. Em certa medida, Sena parece seguir a lição de Walter Pater, ao procurar construir uma poesia capaz de alcançar um certo grau de abstracção. Mas tal não implica que se deva confundir abstracção com vacuidade semântica, sendo necessário recordar uma vez mais a dimensão meditativa que o autor de Arte de Música parece defender para o lirismo. Que a poesia não é capaz de traduzir ou imitar a música, sabia-o Sena muitíssimo bem, como podemos ler em «Bach: Variações Goldberg»:

A música é só música, eu sei. Não há
outros termos em que falar dela a não ser que
ela mesma seja menos que si mesma. Mas
o caso é que falar de música em tais termos
é como descrever um quadro em cores e formas e volumes,
sem mostrá-lo ou sem sequer havê-lo visto alguma vez.[14]

Ou seja, não há qualquer projecto falhado em Arte de Música, porque a suposta ambição de procurar criar uma poesia que se transformasse em música seria avessa à própria noção de metamorfose ou de transposição estética — outro conceito caro na obra crítica de Sena. Tal como na discussão aristotélica em torno do conceito de metáfora, a metamorfose implica necessariamente um transporte, uma transferência, que resulta numa transformação no objecto final. Assim, o poema «Ainda as Sonatas de Domenico Scarlatti, para Cravo» não representa, nem pretende descrever, as sonatas de Scarlatti, por mais que nele se encontrem alusões à percussão e a teclados, dedilhados e violas. A comparação «(...) a percussão tecladamente dedilhada como violas pensativas»[15] só é possível em linguagem verbal. Aliás, só em literatura é que podem existir violas ou cigarros pensativos. Se quisermos encontrar um projecto, e não falhado, mas conseguido, nas metamorfoses de Arte de Música, passa precisamente por aqui: pelo modo como esta obra nos consegue chamar a atenção para as fronteiras do próprio medium da poesia.

Talvez não seja exagerado inferir, ao invés de intuir arbitrariamente, que a verdadeira matéria final dos poemas deste livro não são as peças musicais que aparecem nos títulos e no índice, antes a poesia compacta e evidente, enclausurada entre a brancura da página, no corpo de texto. E é nesse sentido que a poesia é sempre musical, através do próprio ritmo e melodia inerentes às palavras, não precisando, por isso, de ser esvaziada de qualquer sentido semântico.

Como nota final, e aproveitando para encerrar este texto com alguns dos mais belos versos de Arte de Música, resta ainda dizer que mesmo a equivalência entre música e vacuidade semântica ou, como é comum dizer-se romanticamente, entre a música e o inefável indizível, não passa provavelmente de um lugar-comum, por comprovar ou inquirir; leia-se então a primeira e a última estrofe de “Ouvindo o Quarteto Op. 131, de Beethoven”:

A música é, diz-se, o indizível
por ser de inexprimível sentimento
da consciência, ou um estado de alma,
ou uma amargura tão extrema e lúcida
que passa das palavras para ser
apenas o ritmo e os sons e os timbres
só pelos músicos cientes de harmonia
e de composição imaginados. Mas,
se assim fosse, eles só dos homens
saberiam mover-se nos espaços
que a humanidade abandonada encontra
nos desertos de si. Começariam
onde a expressão verbal não se articula
por impossível. Viveriam sempre
na fímbria estreita à beira da maldade
e do absurdo, como que suspensos
na solidão da morte sem palavras.
Não é, portanto, a música o limite
ilimitado dos limites da linguagem,
para dizer-se o que não é dizível.
 
(...)

Se há mistério na grandeza ignota,
e há grandeza em se criar mistério,
esta música existe para perguntá-lo.
E porque se interroga e não a nós,
ela se justifica e justifica
o próprio interrogar com que se afirma
não quintessência ela, mas raiz profunda
daquilo que será provável ou possível
como consciência, quando houver palavras,
ou quando puramente inúteis forem.[16]

[1] A propósito deste livro de Sena dedicado à música, escreveu Belo: «Jorge de Sena, de momento entre nós, em visita ao seu Reino da Estupidez,publicou, como poeta, Arte de Música. Será um livro mais discursivo que Metamorfoses, mas é sem dúvida uma confirmação e situa o seu autor talvez no lugar de maior poeta vivo português. Não temos quem, a não ser Jorge de Sena, possa fazer empalidecer o reinado de Fernando Pessoa. Mas deixemo-nos de metáforas mais ou menos monárquicas», in Senda da Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 258.

[2] A Crítica de Jorge de Sena. Coord. Joana Matos Frias e Joana Meirim, Lisboa: Biblioteca Nacional, 2022.

[3] Jorge de Sena. Poesia I. Lisboa: Moraes Editores, 1977, p. 84.

[4] Jorge de Sena, «O Poeta e o Crítico na Mesma Pessoa — Um Depoimento sobre Algumas Décadas de Experiência Pessoal». Dialécticas Aplicadas da Literatura, Lisboa: Edições 70. 2ª edição, 1977, p. 243.

[5] Jorge de Sena. Poesia II. Lisboa: Moraes Editores, 1978, p. 161.

[6] in Jorge de Sena, Arte de Música, Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 12.

[7] Jorge de Sena, «Estudo Tipológico de um soneto de Camões». Dialécticas Aplicadas da Literatura, Lisboa: Edições 70. 2ª edição, 1977, p. 95.

[8] Maria Brás Ferreira, «Recensão crítica a “Arte de Música”, de Jorge de Sena», Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 219, Maio 2025, p. 179.

[9] ibidem, p. 177.

[10] p. 178.

[11] A este propósito, vale a pena recordar o estudo de Luís Adriano Carlos, Jorge de Sena e a escrita dos limites: análise das estruturas paragramáticas nos Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, Porto: Universidade do Porto, 1986.

[12] Jorge de Sena, Metamorfoses, Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 133.

[13] Jorge de Sena. Arte de Música. Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 44.

[14] ibidem, p. 36.

[15] ibidem, p. 44.

[16] ibidem, pp. 59-60.

* Doutorando financiado pela FCT (2024.06124.BD). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Email: hugomiguelsantos@edu.ulisboa.pt.

REFERÊNCIA:

Sena, Jorge de. Arte de Música. Lisboa: Assírio & Alvim, 2024.

250. Vasco Gato, O Fim do Contágio

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