Viewing entries tagged
Miguel Zenha

244. Filipa Leal, Adrenalina

244. Filipa Leal, Adrenalina

Miguel Zenha

No seu Ways of Worldmaking, Nelson Goodman alega que a literatura não possui «valor de verdade»[i]. Segundo a tese de Goodman, que encontra no conceito «sintomas do estético» de Languages of Art um tratamento exaustivo, a literatura não é redutível a um conteúdo proposicional, ou seja, em rigor não declara coisa alguma. Nesse sentido, Goodman vê como imprestável a oposição entre realidade e ficção: olhar para a literatura com uma grelha que opõe verdadeiro e falso, pondo factos do lado verdadeiro e ficção do lado falso, não faz grande sentido. Goodman considera a arte uma maneira de interpretar tão legítima como, por exemplo, a ciência. Mas a legitimidade da literatura afere-se com dificuldade recorrendo a categorias críticas empenhadas em medir graus de conformidade da literatura face à realidade ou à verdade. De se sugerir que «a realidade» não é decisiva quando lemos poesia não se segue conceder poderes mágicos a poemas: trata-se, sim, de defender a ideia de que estamos perante uma forma particular, que encaro aliás como circunscrita, de descrever coisas a que a dado momento queremos prestar atenção. Um corolário da tese de Goodman, parece-me, é considerar «o quotidiano» uma categoria crítica inútil. Se entendermos por ‘quotidiano’ aquilo que um poeta—na verdade, qualquer pessoa—experiencia, i.e., o que experimenta e imagina, tal não quererá dizer grande coisa. Estaríamos a equiparar poetas tão diferentes como Hölderlin e Cesário Verde sem se perceber o motivo, uma vez que aquilo que um poeta faz é justamente escrever acerca daquilo que experiencia. E dessa forma apelar ao quotidiano seria, na melhor das hipóteses, redundante.

239. Golgona Anghel, A Forma Custa Caro — Exercícios inconformados

239. Golgona Anghel, A Forma Custa Caro — Exercícios inconformados

Miguel Zenha

A Forma Custa Caro consiste num conjunto de onze ensaios que medem o pulso a uma certa contemporaneidade, traçando para o efeito um ponto de situação agudo que incide principalmente sobre literatura. Nesse sentido, o livro privilegia poetas portugueses: de Fernando Pessoa, Mário Cesariny, Ruy Belo e Al Berto — Golgona Anghel tem monografias sobre este último, designadamente Eis-me Acordado Muito Tempo Depois de Mim — uma biografia de Al Berto (Quasi Edições, 2006) e Cronos Decide Morrer — leituras do tempo em Al Berto (Língua Morta, 2013) — a poetas vivos como Rui Pires Cabral e Pedro Mexia. Organizado em quatro partes — «Forma e formato»; «Exercícios inconformados»; «Forma e per-formatividade» e «A forma em ruínas» — o livro propõe-se problematizar a ideia de legitimação da literatura.

237. Marcos Foz, Vaca Preta

237. Marcos Foz, Vaca Preta

Miguel Zenha

Na introdução a Slow Learner, Thomas Pynchon defende que «é errado começar com um tema, símbolo ou outro agente unificador abstracto e tentar depois forçar personagens ou eventos a conformarem-se a isso» (p. 12)[1]. Não querendo discutir o mérito específico desse ponto de vista—Pynchon estava a referir-se a «Entropy», um dos contos que integra Slow Learner—parece-me, no entanto, que a observação descreve adequadamente o pecado original de Vaca Preta, livro de Marcos Foz editado em 2021 numa parceria entre a Bestiário e a Livraria Snob.

231. Manuel de Freitas, Levar Caminho II

231. Manuel de Freitas, Levar Caminho II

Miguel Zenha

Levar Caminho II prossegue a reunião da poesia de Manuel de Freitas, indo desta feita de Levadas (2001–2002) a Estádio (2007). Comece por dizer-se que se confirma a ideia de que esta poesia dificilmente poderia estar mais longe de, se se quiser, querer transfigurar o quotidiano ou a realidade. Na verdade, Manuel de Freitas reputaria de risível qualquer tentativa em transfigurar o que quer que fosse. Daí não haver lugar a experimentalismos linguísticos — é também notória a contenção metafórica — numa poesia assente numa noção elementar e trivial de experiência. Não são, de resto, observáveis grandes manifestações de desobediência e angústia, nesta que se pode considerar uma escrita que funciona sobretudo enquanto decomposição desapiedada.

222. Maria Velho da Costa, Lúcialima

222. Maria Velho da Costa, Lúcialima

Miguel Zenha

Se quisermos escolher o motivo de Lúcialima, «empatia» será uma opção adequada. Ou então, como versões daquele sentimento, dedicação e perseverança. Ora, empatia opera em Lúcialima de maneira particular: não se deixando confundir com paternalismo, dá-se a conhecer como atenção a experiências, hábitos e convicções. Mostra-se desajustado pensar em vilões ou heróis em Lúcialima, o que não significa que as personagens sejam uniformes, planas ou sucedâneas umas das outras. Significa, pelo contrário, que este livro não oferece juízos morais peremptórios, uma vez que não se rege por um ânimo doutrinário demarcado. Lúcialima configura diferenças entre pessoas e contextos — entre experiências ou vivências — se bem que convergindo num traço especialmente saliente: o romance é atravessado por uma certa solidão. No fim de contas, empatia é um modo de lidar com a perda — com o falhanço de algumas crenças fruto do peso exercido pelo passado — sem, contudo, lançar mão de expedientes existencialistas, comiseração ou gáudio boçal. É, por isso, a recusa da mera melancolia, bem como de uma tendência desapiedada e fatalista de olhar para a realidade.

217. Manuel de Freitas, Levar Caminho I

217. Manuel de Freitas, Levar Caminho I

Miguel Zenha

O primeiro dos três volumes que coligem a obra poética de Manuel de Freitas — o segundo saiu entretanto em Abril deste ano —, Levar Caminho I inclui os seguintes livros: Todos Contentes e Eu Também; BWV 244; Os Infernos Artificiais; Game Over; Isilda ou a Nudez dos Códigos de Barras; O Coração de Sábado à Noite e, finalmente, [Sic].

197. Peter Salmon, An Event, Perhaps — A Biography of Jacques Derrida

197. Peter Salmon, An Event, Perhaps — A Biography of Jacques Derrida

Miguel Zenha

In Peter Salmon’s book, we are before a defense of Derrida as a philosopher since it

aims to set out the intellectual development of Jacques Derrida (…) argue for its importance in the history of philosophy. It will argue that Derrida is one of the great philosophers of this or any age; that his thinking is a crucial component of any future philosophy; that his thinking is immediately—always already—applicable to the world as we find it; and that this application has political heft. (p. 4)

193. Edmund De Waal, Letters to Camondo

193. Edmund De Waal, Letters to Camondo

Miguel Zenha

Letters to Camondo continues the central premise of The Hare with Amber Eyes (2010): to talk about people and history as from things or objects. In The Hare with Amber Eyes, we have a collection, mainly assembled in the mid-19th century, of more than two hundred netsukes, which strolled around Paris, Vienna, Tokyo and London, while in Letters to Camondo we start with Moïse de Camondo’s house and decorative arts collection as leading figures. Still, the common ground between both books is especially noticeable if we find Letters to Camondo trying to answer the question from the final pages of The Hare with Amber Eyes, “why keep things, why archive intimacies?”.

176. Rita Felski, Hooked: Art and Attachment

176. Rita Felski, Hooked: Art and Attachment

Miguel Zenha

Rita Felski’s new book puts in place what The Limits of Critique had requested, that is, a less counterintuitive, secluded, and priggish way of addressing art. Since for Felski critique has led us to forget “why (…) works of art matter” (p.1), we must stress the diverse sorts of connections—attachments—between individuals, individuals and works of art, and hence ways of interpreting. In other words, Hooked is not about what art is but about what art can do. Accordingly, Felski offers “an aesthetic that is premised on relation rather than separation, on attachment rather than autonomy” (viii), which elects as target “an ethos of critical aloofness” (x). To that extent, attachment “is a matter not just of feeling (…) but of intellectual, ethical, or institutional ties” (idem).

169. Harold Bloom, Possessed by Memory: The Inward Light of Criticism

169. Harold Bloom, Possessed by Memory: The Inward Light of Criticism

Miguel Zenha

Like Harold Bloom’s last book published in his lifetime, Possessed by Memory collects a set of over seventy texts, mostly brief and dating at least from 2013, spread over four parts and a coda. This book’s particularity is asserted right away in the preface: “[t]his book is reverie and not argument” (xx). Specifically, Possessed by Memory consists of a series of readings paying tribute to Bloom’s favorite authors, which anyone even slightly acquainted with his work will easily foresee. By “reverie” we have, then, testimonies or personal notes—that is to say, without concerns in delimiting a conceptual field—which end up being the aftermath of individuals and books’ perennial presence. Thus, Possessed by Memory aims to move away from any purpose mistaken with “a lamentation for my own generation of critics and poets. Instead, it hopes, in part, to be a living tribute to their afterlife in their writings” (xix).

130. Dinis Machado, Reduto Quase Final

130. Dinis Machado, Reduto Quase Final

Miguel Zenha

Os cerca de doze textos deste livro de Dinis Machado formam um objecto heterodoxo e dinâmico. Relevam, por exemplo, a importância que A Queda, de Albert Camus, continua a ter para si, em «As quedas», passando também pelo tipo de diálogo frenético que remete para o universo protagonizado pelo «rapaz» de O que diz Molero, em «Os rapazes dos livros, das fitas e da bola». Na badana da edição original — a última reedição, pela Quetzal Editores, é de 2009 e inclui Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Márquez — estão algumas coordenadas de leitura que o próprio Dinis Machado propõe e que convocam as ideias de «aparelhagem de ensaio literário», de «acção cronológica desencaixada» e acima de tudo «subentendida», a par da «diferença de velocidades: a visão, o tratamento, o tempo e o espaço que lhe correspondem» e nos quais se interligam aqueles «filtros de memória, laços, às vezes fios»; isso em contacto privilegiado com uma «área autobiográfica, esclarecida em funções narrativas que parecem afastar-se, mas que dela revelam». Livro cuja originalidade reclama novas leituras, dentre o seu conjunto destacarei os textos que me parecem mostrar com maior visibilidade o «fundo-forma», ou fio de horizonte, nele contido e que passa, como veremos, por uma aproximação singular ao mundo nas suas mais variadas manifestações.