Guilherme Berjano Valente
O Fim do Contágio (2022), de Vasco Gato, aponta para o terminar da situação pandémica vivida entre 2020 e o respetivo ano de publicação, 2022. É um livro com alusões às máscaras que nos protegiam do bicho – «E bebemos do ar / todas estas máscaras que nos olham / e falta sempre um gosto a guerra» (p. 7) – e ao tempo em que ficámos todos fechados em casa, aguardando uma libertação social permissiva de passeios e desporto ao ar livre: «A nespereira trouxe os meus frutos / à reclusão dos meus olhos. / […] / Quantos de nós não estarão a fazer o mesmo / sob a película da letargia?» (p. 12). No entanto, não é isto motivo para se rotular o livro como sendo apenas sobre a pandemia, tal seria redutor. É, isso sim, um livro que a partir do cenário pandémico explora os meandros existenciais que apenas se tornaram possíveis devido a um bicho forte e desconhecido e a um enclausuramento solidário de forma a prolongar a espécie humana.
Guilherme Berjano Valente
Ao ler-se O Inquieto Verbo do Mar (a poesia reunida de Sebastião da Gama), fica-se com a impressão de que a poesia de Gama se caracteriza por alguns temas extremamente recorrentes: a relação do poeta com Deus, a relação do humano com a natureza e as relações eróticas do próprio poeta. Todos os temas, no entanto, subsumem-se a uma obsessão: a própria figura de Deus e a forma como Ele se manifesta. Parece, então, possível descrever a poesia de Gama como uma poesia obsessiva para com um núcleo temático restrito que se vai manifestando, na sua obra, de diversas formas.
Guilherme Berjano Valente
Ricardo Gil Soeiro, em Lições da Miragem (2024), posiciona-se como um poeta que regista o que vê no mundo, retirando, deste registo, lições. As coisas que vê, no entanto, são miragens, ou seja, imagens que projeta sobre a realidade. Como nos seus outros livros, os poemas questionam temas comuns da poesia e da vida, de forma autêntica e inovadora. Como é esperado de Gil Soeiro, e seguindo os passos de poetas como António Franco Alexandre e Carlos de Oliveira, o livro possui uma arquitetura inquebrável que leva o leitor a experienciar cada poema não como uma coisa isolada, mas como um texto que se desenvolve e se significa devido ao texto que o precede. O poeta, assim, encaminha o leitor até aos últimos versos, onde se descreve o próprio livro:
Eis o que foi e o que será.
Os que estiveram e os que foram.
Os que nunca virão.
O resto são palavras:
curta distância até à morte. (p. 74)
Guilherme Berjano Valente
A poesia de Nuno Guimarães parece-nos ser bem descrita pelo início da música «Pronúncia do Norte», dos GNR.: «Há um prenúncio de morte / Lá do fundo d’onde eu venho». O motivo deste prenúncio é tanto a noção de finitude que se sente ao ler os seus poemas, pautados por imagens estéreis e secas, como o facto de o poeta ter morrido aos 30 anos. Entre Sílabas e Lavas (2024) – livro que reúne a sua poesia – apresenta-se, então, como um fragmento que se crava contra a passagem do tempo, tentando combater a morte, enquanto transparece a ideia da sua própria esterilidade e finitude próxima.
Guilherme Berjano Valente
O Pior é Que Fica (2023), de José Maria Vieira Mendes, é um livro que tem um prefácio e sete capítulos (cada um é uma peça teatral). Estes, que numa primeira leitura parecem estar ligados, apenas, tematicamente – questões de finitude, de materialidade, etc. –, quando relidos de acordo com a forma apresentada na contracapa – «o livro inclina a literatura dramática para a leitura em voz baixa» –, levam-nos a considerar a obra como um romance, começado com o nascimento de uma frase, prolongado através da sua luta em relação à sua finitude, e terminado num suspiro que a esvazia de dores e complicações.
Helena Craveiro
Guilherme Berjano Valente
Gostamos deste livro porque tem comentários a poemas que nos fizeram começar a gostar desses poemas. Gostamos dele, também, por ser um livro escrito por pessoas que gostam de passar tempo a pensar sobre poesia.
Guilherme Berjano Valente
Ice Merchants (2022), de João Gonzalez, destaca o carácter confortável e seguro que nasce das nossas rotinas e dos nossos hábitos. Neste filme, um pai e um filho vivem numa montanha envolta em gelo, numa casa que se segura a uma das suas encostas através de cordas. Como o nome do filme indica, são vendedores de gelo: tendo em conta o frio do local em que se encontram, congelam água e partem-na em pedacinhos para a vender. Ao partirem o gelo, recolhendo-o para venda, saltam com um para-quedas de modo a chegarem à aldeia mais próxima. Quando vendem tudo, recolhem-se para casa, subindo a encosta com um elevador manual – uma mota estagnada que, ao ser acelerada, os puxa para cima. Todos os dias, quando saltam, os seus gorros voam-lhes da cabeça, acabando por desaparecer na imensidão do ar. Percebemos que existe um grau de conforto nesta rotina tanto por repetirem-na, como por não temerem aquilo que os rodeia: uma grande queda e uma encosta de montanha. Isto torna-se ainda mais claro com a criança a andar de baloiço sobre o vazio, durante grande parte do dia, mostrando que a queda e o perigo não fazem parte da sua conceção de andar de baloiço sobre o abismo. Desta repetição quotidiana, nasce um sentimento de segurança e de conforto nas personagens, tornando o espaço à sua volta, aparentemente perigoso, num espaço sem perigos para os que o habitam.
Guilherme Berjano Valente
Há coletâneas de poesia e há livros de poesia. Enquanto o primeiro tipo se destaca pelo seu valor antológico, servindo de espaço de encontro a vários poemas de um só autor ou de vários, o segundo possui um cuidado edificado, no qual cada poema tem um papel instrumental na estética e na filosofia transmitida: alguns exemplos mais notáveis serão O Guardador de Rebanhos[1], de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) ou Fervor de Buenos Aires[2], de Jorge Luis Borges.