Lauro Reis
Masaoka Shiki faz parte do quarteto de mestres de haiku japoneses, juntamente com Matsuo Bashô, Yosa Buson e Kobayashi Issa. Desse grupo, Shiki é o mais contemporâneo, o que viveu menos tempo e o que compôs mais poesia. É também o mais iconoclasta dos quatro, especialmente pela sua interpretação considerada blasfema da obra do seu precursor Matsuo Bashô. Numa época em que este havia sido elevado a estatuto divino pelo Estado, Shiki argumentou que era Buson, e não Bashô, o que detinha maior qualidade poética. Todavia, uma das contingências interessantes da vida de Shiki é o facto de ser o único membro do quarteto que viveu na época de abertura forçada do Japão ao ocidente. Após um período de cerca de duzentos e cinquenta anos de reclusão nacional (Sakoku 鎖国 1603-1868), os artistas japoneses entravam em contacto, pela primeira vez em larga escala e em variedade, com a arte e pensamento ocidental. No caso de Shiki, foram as teorias do crítico de arte, pintor e filósofo John Ruskin que, de acordo com a introdução de Joaquim M. Palma (doravante JMP), mais impacto lhe causaram, sobretudo nos seus esforços argumentativos de renovação e habilitação do haiku enquanto forma de arte universal.
João N. S. Almeida
Continuing the project that Hans-Ulrich Gumbrecht started with In Praise of Athletic Beauty (2006) and benefiting from much that has been put forward in Production of Presence: What Meaning Cannot Convey (2004), Crowds (2021) intends to speculate analytically on a subject’s ontological status when immersed in a crowd. As expected, the book is mostly anchored on continental philosophy: his references are authors interested in the being-as-body such as Husserl and Heidegger, who form the basis for a focus on the bodily presence as opposed to the dimension of intellectual meaning. Gumbrecht’s reasoning in those previous works tries to gravitate towards the body, a culture of presence and, specifically in this one, the ontological differences that being immersed in a crowd and watching sports may bring out.
Lourenço Veiga
Sorry, Wrong Number é um filme baseado numa peça para rádio do mesmo nome. Ainda que este registo cinematográfico seja, num certo sentido, a representação visual da performance radiofónica (com vários elementos acrescentados que aumentam a complexidade da obra, como veremos), o elemento principal de ambos não deixa de ser o som, mais especificamente (e exclusivamente) o som que se ouve, em toda a sua limitação e promessa, numa conversa à distância. Não quero com isto dizer que o som no filme é tão importante como o som na peça de rádio; no filme, é a nível conceptual que ele nos interessa. Encaminha-nos para algo que não faz parte apenas dos «dados dos sentidos», pois estamos a falar também de memórias e expectativas, ou de ilusões e medos.
Teresa Líbano Monteiro
Eugénio Lisboa foi não só amigo pessoal do escritor José Régio como é, também, o seu maior e mais incansável crítico. José Régio – a obra e o homem constitui o ensaio mais longo que dedicou ao poeta de Vila do Conde e nele pretende, como explica na «Nota à 3.ª edição», «fazer a “soldadura” sobre o Homem e a Obra, sem fundamentalismos biografistas mas também sem preconceitos ferozmente antibiografistas» (p. 9). O ensaio foi publicado pela primeira vez em 1976, tendo sido de novo editado em 1986 e, mais de trinta anos depois, está novamente disponível nas livrarias graças à editora Opera Omnia. É necessário, aliás, deixar aqui uma nota de apreço a esta editora, que nestes últimos anos tem vindo a republicar volumes da obra de José Régio (e.g. Histórias de Mulheres, Biografia, Páginas de doutrina e crítica da Presença, a antologia de poemas Nunca vou por aí) e, neste caso, bibliografia crítica sobre o autor. A reedição destes livros – e, o que não é despiciendo, com um design simples e bonito – será um contributo para uma maior divulgação e leitura de José Régio pelo público geral português, algo de que beneficiarão, certamente, tanto o nome do escritor como os leitores.
Lauro Reis
Hojôki é o título de uma micronarrativa autobiográfica sobre um poeta japonês e a sua cabana. É um texto que discorre sobre os motivos por que Kamo No Chômei, o autor, decidiu afastar-se da vida urbana e construir, já na segunda metade da sua vida, uma cabana minúscula no meio de uma montanha, abdicando de todo o conforto material da vida na capital.
James Dias
Há algo de perverso em recomendar um poema a alguém. Recomendar algo a alguém parece inocente. Achamos que uma pessoa poderá gostar de algo de que nós também gostamos. Se gostámos de um poema, de um filme, ou de um restaurante, é natural que queiramos partilhá-lo com alguém de quem gostamos; queremos que essa pessoa também goste daquela coisa. O problema com isto é acharmos (e desejarmos) que a outra pessoa goste da coisa da mesma forma que nós gostamos, que repare no que nós reparámos. Há uma diferença entre apontar para algo e apontar para algo e explicar exactamente para onde estamos a apontar. Diferente ainda é achar que, por explicarmos exactamente para onde estamos a apontar, a pessoa consegue ver o que nós vemos.
Francisco Cambim
Numa entrevista recente, Geordie Greep, um dos membros da banda londrina black midi, faz um comentário a propósito da reacção ao primeiro álbum da banda, Schlagenheim, lançado em 2019, e deixa uma antecipação relativamente ao segundo, Cavalcade, lançado oficialmente a 28 de Maio de 2021. Greep revela na entrevista que, passado algum tempo, todos os membros da banda se aborreceram com o primeiro álbum. «So it was like: this time let’s make something that is actually good», nas palavras de Greep. Para aqueles de nós que, passados mais de dois anos, ainda não se tinham aborrecido com o álbum de estreia da banda, as palavras de Greep deixavam alguma curiosidade e expectativa. Se, por um lado, se imagina que os black midi sejam musicalmente capazes de fazer quase tudo o que lhes apetecer, por outro, surge uma pergunta, com potencial para se tornar frequente e que sugere a própria imprevisibilidade do percurso da banda: o que é que eles vão fazer a seguir? A resposta à pergunta tem, por agora, a forma de Cavalcade.
Susana Bastos Mateus
No princípio, reinava a escuridão. Podiam ser estas as palavras iniciais da ópera A Nave dos Diabos, levada ao palco do Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, nos dias 10 e 11 de Julho de 2021, pela Associação Setúbal Voz e pela Companhia de Ópera de Setúbal. No entanto, as primeiras palavras são «tenho fome!», um grito dilacerante que um dos membros do Coro Setúbal Voz lança na entrada da sala, junto à plateia.
Inês Morais
Being for Beauty begins with a few anecdotes involving aesthetic experts, ‘not all gentlemen, not all European, not all “highbrow”’ (p. 26). These set the tone of the book, which aims to be both progressive and alternative to highbrow philosophical aesthetics, occasionally relaxed and entertaining, while engaging mainly with classical, mainstream work in general philosophy. Breadth of interest and the project of covering literature from large neighbouring areas of philosophical discussion—to defend aesthetics—are immediately salient qualities of this book.
Miguel Andrade
É notável hoje, como o era na Idade Média, que uma ilha relativamente remota e escassamente povoada seja reconhecida internacionalmente pela vitalidade da sua poesia. A Islândia, de onde nos chega esta colectânea de poemas, pela mediação de Amadeu Baptista, possui uma ligação íntima e constante com a poesia, desde a sua colonização em c. 870 d.C. O verso pertence ao quotidiano dos islandeses e a sua tradição poética é vasta e prolífera. Nos termos do historiador dinamarquês Saxo Grammaticus (1160-1220), «A diligência dos homens da Islândia não deve ser envolta em silêncio». Pelos Nossos Corações passa a Linha de Fogo desvela-nos a poesia do mesmo povo, embora de diferente cronologia. Estes poemas foram originalmente publicados entre 1937 e 1991, pelas mãos de dezoito poetas (quatro dos quais mulheres). A selecção foca-se, em grande parte, num período de transição, da libertação da poesia islandesa dos seus moldes tradicionais, sacudindo-se da aderência estrita a poemas de estrutura regular, rimados e aliterados, e dos velhos e repetidos temas (uma poesia lírica, a dedicação à natureza e um ideário romântico, por vezes nacionalista e individualista). Nesta fatia do século XX, encontramos uma Islândia em mudança, abrindo-se ao mundo, e uma poesia acompanhando o seu passo, com os anos 40 como charneira desta articulação.
Tiago Ramos
Na protocolar cena de créditos iniciais, à medida que os artistas pertencentes à produção de Gaslight (1944), de George Cukor, são elencados, no plano de fundo conseguem-se distinguir as sombras de duas pessoas, sendo que uma aparenta estar a estrangular a outra. Assim sendo, o primeiro plano a que o espectador tem acesso, ainda antes de a ação começar a desenrolar-se, prenuncia o assassínio de Alice Alquist, uma cantora de ópera reconhecida mundialmente, que é encontrada morta na sua residência, na Praça Thornton, em Londres. De igual modo, o engenho de sombras estabelecido pelo plano inaugural figura um dos motivos estruturantes da intriga: a dependência ontológica. Paula Alquist (Ingrid Bergman), a sobrinha da falecida cantora de ópera, tal como uma sombra projetada sobre uma superfície, afirma-se enquanto desdobramento ontologicamente vazio que está dependente de uma entidade que lhe dá realidade: a tia assassinada. Paula é a sombra da tia, uma figura ela própria espectral, que nunca surge em cena, uma vez que os primeiros passos da intriga são dados na sequência da sua morte trágica.
Miguel Zenha
Rita Felski’s new book puts in place what The Limits of Critique had requested, that is, a less counterintuitive, secluded, and priggish way of addressing art. Since for Felski critique has led us to forget “why (…) works of art matter” (p.1), we must stress the diverse sorts of connections—attachments—between individuals, individuals and works of art, and hence ways of interpreting. In other words, Hooked is not about what art is but about what art can do. Accordingly, Felski offers “an aesthetic that is premised on relation rather than separation, on attachment rather than autonomy” (viii), which elects as target “an ethos of critical aloofness” (x). To that extent, attachment “is a matter not just of feeling (…) but of intellectual, ethical, or institutional ties” (idem).
Madalena Quintela
Em Maio do passado ano de 2020, foi publicada pelas Edições 70 a tradução para português do ensaio do filósofo Josep Maria Esquirol, A Resistência Íntima, Ensaio de uma Filosofia da Proximidade. Esquirol é professor de Filosofia na Universidade de Barcelona, onde dirige um grupo de investigação, de nome Aporia, e a presente obra, publicada pela primeira vez em 2015 pela editora espanhola Acantilado, valeu ao seu autor o Prémio Ciutat de Barcelona, logo em 2015, e o Premio Nacional de Ensayo, em 2016.
João Maria Carvalho
É certamente motivo de espanto que entre os estudos literários publicados no último ano se destaque um conjunto de peças musicais. Se, num primeiro momento, a designação nos parece apenas sugestiva, a escuta deste disco confirma a sua exactidão, mostrando ser possível à escrita musical a realização de indispensáveis «estudos literários». Faz já algum tempo que o compositor João Madureira se tem revelado um atento leitor. A sua música foi-nos habituando a compreender melhor os poemas de Ana Hatherly – em peças como «Noite» (2010), «3 momentos para Ana Hatherly» (2003) – ou a situar o lugar da poesia e da literatura na liturgia, como faz na «Missa de Pentecostes» (2010), em que poemas de Teixeira de Pascoaes, José Augusto Mourão ou Mário Cesariny dão corpo à celebração comunitária.
Joana Corrêa Monteiro
Art, philosophy, and intellectual activity in general have been described as having social and political importance for centuries by artists, philosophers, critics, and all kinds of intellectuals. Some of the disheartening—but, to a degree, predictable, even if remote—consequences of such claims are the current labelling of works like Kant’s Critique as potentially harmful and offensive or the recent disappearing of names like Flannery O’Connor’s from university halls. The urge to do such things has multiple origins, with diverse degrees of seriousness, and the importance of social media fury, often combined with ignorance and sometimes with political and ideological agendas, should not be underestimated. But it is noteworthy that these tendencies have risen after several late twentieth-century literary scholars and moral philosophers argued that literature has a specific role either in moral philosophy, in morality or both, with assertions that could be easily extended to art, intellectual activity, politics and the social life.
Lauro Reis
Yosa Buson (1716-1784) é considerado retrospectivamente pela crítica como um dos maiores poetas japoneses modernos. Antes do reconhecimento das suas capacidades poéticas, reconhecimento inaugurado por Masaoka Shiki (1867-1902), Buson era celebrado sobretudo pela sua qualidade enquanto pintor. Embora não fosse extraordinário o artista japonês dedicar-se a vários ofícios artísticos, o que distingue Buson da maioria é a sua excelência nesses dois planos. Porém, a sua excessiva humildade fazia-o considerar a sua própria poesia não meritória de qualquer obra publicada exclusivamente em seu nome: «Não é necessário fazer-se uma compilação dos meus haikus. Muitas vezes, publicar um poeta reconhecido acaba por trazer-lhe problemas. O que se torna bem pior para alguém que não passa da mediania, como é o meu caso.» Resta-nos agradecer à desobediência dos seus discípulos em publicar postumamente uma colectânea dos haiku do seu mestre, mestre esse que via no seu precursor Matsuo Bashô o pináculo de arte poética que modestamente procurava emular.
Carolina Torres
Dias e Dias, de Adília Lopes, publicado no fim de 2020 e escrito, tanto quanto podemos perceber, até Junho desse ano, é uma colecção de pequenos textos, alguns poemas e um conjunto de memórias da primeira metade do ano passado. Refere-se, assim, ao início da pandemia, quando ficámos todos em casa, pela primeira vez. É um livro raro porque é um diário extraordinariamente recente.
João Esteves da Silva
James Conant has described Oskari Kuusela’s first book, The Struggle against Dogmatism (2008), in the following way:
Rather than being framed around the assumption that the crucial difference between an early and a later Wittgenstein lies in their respective philosophical doctrines, it takes its point of departure from the assumption that early and later Wittgenstein equally aspired to practice philosophy in a manner which eschewed all doctrine. The book then seeks to articulate the crucial differences between early and later Wittgenstein in terms of the details of the respective ways in which they sought to realize such an aspiration. (Conant 2011, 623)
There Kuusela sought to expound Wittgenstein’s general conception of philosophy as “an activity . . . [that] consists essentially of elucidations” (TLP 4.112), that aims to clarify our thought and talk, not to put forward doctrines or theses. (“Philosophy is not a theory . . . [it] does not result in “philosophical sentences”, but in making sentences clear” (ibid.).) Now, with Wittgenstein on Logic as the Method of Philosophy (2019), his second book, he further develops the picture laid out in the former and examines its place within the context of twentieth-century analytic philosophy. As the title indicates, the primary emphasis is on Wittgenstein’s philosophy of logic and metaphilosophy, which, from the point of view recommended by Kuusela, emerge as virtually one and the same. Arguably, his central claim is that the conception of philosophy as an activity of logical clarification, a Fregean and Russellian inheritance, should be understood as applying to all of Wittgenstein’s thought, unifying it to a considerable extent. Far from denying its radical transformations, what Kuusela proposes is an alternative assessment of Wittgenstein’s development, notably as involving a largely unnoticed “paradigm shift” (Kuusela 2019, 143) in philosophical logic. By drawing attention to such a shift and offering an account of the novel paradigm he identifies in Wittgenstein’s later works, Kuusela also makes a case for a most needed change in contemporary analytic philosophy, through a renewal of its historical and metaphilosophical self-consciousness, as well as the adoption of Wittgensteinian logical methods. As he puts it, “this book . . . aims to rewrite parts of the history of analytic philosophy in order to uncover paths to the future that previous histories have covered up.” (Kuusela 2019, 1)
Miguel Zenha
Like Harold Bloom’s last book published in his lifetime, Possessed by Memory collects a set of over seventy texts, mostly brief and dating at least from 2013, spread over four parts and a coda. This book’s particularity is asserted right away in the preface: “[t]his book is reverie and not argument” (xx). Specifically, Possessed by Memory consists of a series of readings paying tribute to Bloom’s favorite authors, which anyone even slightly acquainted with his work will easily foresee. By “reverie” we have, then, testimonies or personal notes—that is to say, without concerns in delimiting a conceptual field—which end up being the aftermath of individuals and books’ perennial presence. Thus, Possessed by Memory aims to move away from any purpose mistaken with “a lamentation for my own generation of critics and poets. Instead, it hopes, in part, to be a living tribute to their afterlife in their writings” (xix).
TIAGO CLARIANO
In what might consist the process of replacing a soul? What are the motives for that research? These are the main questions that Professor Brett Bourbon raises in his book.