251. Jorge de Sena, Arte de Música

251. Jorge de Sena, Arte de Música

Hugo Miguel Santos*

É bem possível que uma recensão acerca da reedição de uma obra publicada há mais de cinquenta anos, como é o caso de Arte de Música (1968), esteja fatalmente condenada ao triste fado da redundância. Podemos sempre investir algumas linhas a louvar a decisão da editora Assírio & Alvim de tornar novamente disponíveis os poemários, como é regra de praxe, daquele que é não só um dos maiores poetas da literatura portuguesa, como um dos críticos de poesia mais decisivos da nossa humilde história — assim, acompanhando a grandiloquência do discurso mercantilista. E poder-se-ia dar nota da decisão certeira de os fazer acompanhar de ensaios introdutórios de críticos e académicos contemporâneos, procurando assim revitalizar a recepção crítica de um autor que sempre se esforçou por ser lido e entendido, sem jamais cair no didactismo.

De facto, num país de poetas como alegadamente é o nosso, não deixa de ser surpreendente que sejam poucos aqueles investidos em pensar criticamente sobre as virtudes e os defeitos que sempre existem em qualquer poesia, seja qual for a época ou o território. Se nos limitarmos ao século XX, lembramo-nos forçosamente de três nomes: Pessoa, Sena e Magalhães. Poder-se-ia somar a este elenco o único livro que reúne a prosa crítica de Ruy Belo; refiro-me a Na Senda da Poesia (1969)[1], ou outros livros de género híbrido, como O Aprendiz de Feiticeiro (1971), de Carlos de Oliveira ou Photomaton & Vox (1979), de Herberto Helder, cujo pendor reflexivo em torno da feitura do poema continua a ressoar até aos nossos dias. Por certo, o leitor atento será capaz de apontar mais dois ou três nomes de poetas que também escreveram crítica, ou de um ou dois críticos cuja poesia talvez mereça ser relida com cuidado.

O caso de Sena é paradigmático: não se tendo contentado em escrever alguns dos poemas mais singulares da nossa tradição, deixou-nos textos fundamentais sobre o Cancioneiro, Camões, Sá de Miranda, Bernardim, Pessoa, Cinatti e tantos outros contemporâneos de várias épocas e geografias. Além disso, traduziu e introduziu autores de várias latitudes em inúmeros ensaios, separatas e antologias. Sobre a sua crítica, aliás, foi editado recentemente um volume com contributos muito relevantes pela Biblioteca Nacional, organizado por Joana Matos Frias e Joana Meirim[2]. Apesar das constantes queixas em vida nesse sentido, não têm faltado críticas e comentários à obra de Sena que, infelizmente, tarda em alcançar um público mais amplo e amador. Mais uma razão para reiterar o elogio à reedição de Arte de Música, prefaciada por Jorge Vaz de Carvalho, um dos maiores conhecedores da obra seniana — para retomar a tónica publicitária.

Regressando ao início deste texto: por que razão voltar a escrever a propósito de um poeta que procurou «(...) sentar-se à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro/ (...) a escrever como se escrever fosse respirar» preso «(...) à mesa onde os homens comem.»?[3] Antes de mais, para notar uma tendência comum na exegese de textos assinados por autores como Sena que reúnem na mesma pessoa «o poeta e o crítico» — como o próprio se afirma no título de um depoimento publicado em Dialécticas Teóricas da Literatura —, interpretando os seus poemas como aplicações ou exemplos das suas teses e argumentos. Destarte, a crítica destes poetas parece servir como uma espécie de caixa de ferramentas que nos ajuda a desmontar as peças constituintes dos poemas. Quando se lê um poema como o já citado «Os Trabalhos e os Dias», somos levados a tratá-lo como exemplo prático da poética do testemunho. E o mesmo acontece, entre tantos outros exemplos, com a teoria da impessoalidade em T.S. Eliot; sobejamente apresentado como um dos «mestres» do autor de O Reino da Estupidez (1961), «talvez porque era então o nome moderno mais mencionado e conhecido» da tradição inglesa, como o próprio Sena refere.[4]

Descontada a causticidade de Sena, estavam bem avisados os críticos que detectaram precocemente o vínculo entre os dois poetas, como se pode perceber inclusivamente pela utilização que Sena faz de um conceito eliotiano para explicar a natureza das suas Metamorfoses:

Os ingleses nunca puseram em causa a grandeza lírica de Wordsworth ou de Shelley filosofando em verso (...). O mesmo se dirá da poesia da Itália que nunca se envergonhou, nem mesmo com Croce, de que Dante ou Petrarca fossem poetas inteligentes e cultos.

Que a incultura artística ou geral dos nossos literatos (e não é menos incultura o saber-se apenas de literatura «moderna»), ou a incultura literária dos nossos artistas e críticos de arte, sejam, com as honrosas excepções da praxe, regra, eis o que não pode significar que uma pintura, uma escultura, um monumento, não sejam, tão legitimamente como uma paisagem ou uma dor de dentes, o «objectivo correlativo» de um estado de alma, e pretexto de meditação poética.[5]

Como defende Jorge Vaz de Carvalho, «esta poesia é uma arte de conhecer e criar conhecimento» que «aprofunda a experiência de escutar ao transfigurar verbalmente o fenómeno musical que comunica».[6] É precisamente neste sentido que aponta Sena quando alia a grandeza lírica à dimensão filosofante de poetas maiores das mais diversas tradições. Não é de estranhar que Sena procure defender a dimensão filosófica da sua poesia. E muito menos que sejamos levados a concordar com a crítica que faz da sua própria poesia.

Num outro texto dedicado ao soneto de Camões, «Erros meus, má fortuna, amor ardente», Sena refere-se à ideia de «correlação descritiva», ecoando novamente o objectivo correlativo de Eliot:

Camões não visa impressões fugidias e momentâneas que lhe sejam causadas pela meditação sobre a sua vida. Camões não pretende descrever o comportamento do objecto dessa reflexão, que a sua vida é, mas caracterizar rigorosamente as eventualidades desse objecto de pensamento. A existência profunda da sua meditação não lhe obnubila o desejo de ver a sua vida por todos os lados, de examiná-la de fora do contexto existencial.[7]

 Torna-se tentador substituir o nome de Camões por Sena e a vida de Camões, enquanto objecto, pela arte, para compreender melhor o movimento destes poemas de Arte de Música, que são encarados da mesma forma que os poemas incluídos em Metamorfoses (1963): enquanto meditações poéticas em torno do sentido de determinados objectos estéticos. Não se trata, portanto, de tentativas «de esvaziamento de sentido pela linguagem poética», como Maria Brás Ferreira defende na sua resenha a esta reedição.[8] Esta recensão é, aliás, reveladora do perigo a que se sujeitam os autores que pertencem à já referida categoria de poetas-críticos. Se o aparato crítico elaborado por um poeta serve muitas vezes para ilustrar a interpretação de um determinado livro ou poema, facto que não configura nada de substancial per se, muito menos preocupante, torna-se particularmente incompreensível porque se deve intuir «(...) que uma frase escrita (...) a respeito de “Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena”» se pode ou deve estender aos restantes poemas incluídos em Metamorfoses e Arte de Música.[9]

É a partir desta intuição que Ferreira se refere a este livro como «um projecto falhado», enquanto se permite tecer considerações relativamente misteriosas como as seguintes: «a transcendência propriamente musical não se atém apenas a uma superioridade de espírito», «a natureza holística da música coincide com a sua autonomia relativamente a quaisquer teorias que lhe recobrassem a vitalidade» ou «os pares dicotómicos — prova de densidade semântica, prenhe de ideias sem prova, só sinais — que vão construindo a rede semântica fundamental desta poética»[10], cuja assertividade e opacidade parecem apontar para uma escrita quase alquímica, essa sim à procura de um certo género de «esvaziamento de sentido», que a recenseadora gostaria de ter achado na obra recenseada.

Os «Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena» são, de facto, um conjunto de poemas singularíssimo não só na obra de Sena, como na nossa poesia em geral. A partir de resquícios de vocábulos vindos do latim, do grego, mas também do português mais arcaico[11], Sena consegue criar um artefacto verbal que se furta a uma interpretação imediata do sentido semântico, convocando a nossa atenção para a importância melódica da própria língua: «Que vúlcios defuratos, que inumana/ sussúrica donstália penicela,/ às trícotas relesta demiquela,/ fissivirão bolíneos, ó pimana»[12]. Não se trata, portanto, de encontrar uma correlação entre a poesia e a música, nem sequer de mimetizar processos entre artes, como sugere Maria Brás Ferreira; mas de acentuar a importância prosódica da poesia, em «Quatro Sonetos», e de utilizar objectos artísticos para meditar filosoficamente em verso, em Arte de Música, aproveitando ainda para recolectar lembranças vindas de um passado trespassado pela música, como se percebe logo a partir dos primeiros versos do livro:

Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música.
Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano
era, para mim, sem distinção entre a Viúva Alegre e Mozart,
o grande futuro paralelo a tudo o que eu seria[13]

Há, no entanto, uma intuizione introversa a ter em conta, na supracitada recensão, que merecia ser mais bem desenvolvida. Por mais que «o elogio à música» não sirva para afirmar a suposta «menoridade da linguagem verbal» ou, como repete no já referido exemplo alquímico, para apontar «um dedo (...) à singeleza musical a que a poesia será invariavelmente preterida», a recenseadora acaba por revelar, involuntariamente, uma das relações fundamentais nestas metamorfoses senianas, isto é, que a poesia e a música são inevitavelmente autónomas e distintas, por mais que as artes possam, e devam, pensar-se e inspirar-se mutuamente. Em certa medida, Sena parece seguir a lição de Walter Pater, ao procurar construir uma poesia capaz de alcançar um certo grau de abstracção. Mas tal não implica que se deva confundir abstracção com vacuidade semântica, sendo necessário recordar uma vez mais a dimensão meditativa que o autor de Arte de Música parece defender para o lirismo. Que a poesia não é capaz de traduzir ou imitar a música, sabia-o Sena muitíssimo bem, como podemos ler em «Bach: Variações Goldberg»:

A música é só música, eu sei. Não há
outros termos em que falar dela a não ser que
ela mesma seja menos que si mesma. Mas
o caso é que falar de música em tais termos
é como descrever um quadro em cores e formas e volumes,
sem mostrá-lo ou sem sequer havê-lo visto alguma vez.[14]

Ou seja, não há qualquer projecto falhado em Arte de Música, porque a suposta ambição de procurar criar uma poesia que se transformasse em música seria avessa à própria noção de metamorfose ou de transposição estética — outro conceito caro na obra crítica de Sena. Tal como na discussão aristotélica em torno do conceito de metáfora, a metamorfose implica necessariamente um transporte, uma transferência, que resulta numa transformação no objecto final. Assim, o poema «Ainda as Sonatas de Domenico Scarlatti, para Cravo» não representa, nem pretende descrever, as sonatas de Scarlatti, por mais que nele se encontrem alusões à percussão e a teclados, dedilhados e violas. A comparação «(...) a percussão tecladamente dedilhada como violas pensativas»[15] só é possível em linguagem verbal. Aliás, só em literatura é que podem existir violas ou cigarros pensativos. Se quisermos encontrar um projecto, e não falhado, mas conseguido, nas metamorfoses de Arte de Música, passa precisamente por aqui: pelo modo como esta obra nos consegue chamar a atenção para as fronteiras do próprio medium da poesia.

Talvez não seja exagerado inferir, ao invés de intuir arbitrariamente, que a verdadeira matéria final dos poemas deste livro não são as peças musicais que aparecem nos títulos e no índice, antes a poesia compacta e evidente, enclausurada entre a brancura da página, no corpo de texto. E é nesse sentido que a poesia é sempre musical, através do próprio ritmo e melodia inerentes às palavras, não precisando, por isso, de ser esvaziada de qualquer sentido semântico.

Como nota final, e aproveitando para encerrar este texto com alguns dos mais belos versos de Arte de Música, resta ainda dizer que mesmo a equivalência entre música e vacuidade semântica ou, como é comum dizer-se romanticamente, entre a música e o inefável indizível, não passa provavelmente de um lugar-comum, por comprovar ou inquirir; leia-se então a primeira e a última estrofe de “Ouvindo o Quarteto Op. 131, de Beethoven”:

A música é, diz-se, o indizível
por ser de inexprimível sentimento
da consciência, ou um estado de alma,
ou uma amargura tão extrema e lúcida
que passa das palavras para ser
apenas o ritmo e os sons e os timbres
só pelos músicos cientes de harmonia
e de composição imaginados. Mas,
se assim fosse, eles só dos homens
saberiam mover-se nos espaços
que a humanidade abandonada encontra
nos desertos de si. Começariam
onde a expressão verbal não se articula
por impossível. Viveriam sempre
na fímbria estreita à beira da maldade
e do absurdo, como que suspensos
na solidão da morte sem palavras.
Não é, portanto, a música o limite
ilimitado dos limites da linguagem,
para dizer-se o que não é dizível.
 
(...)

Se há mistério na grandeza ignota,
e há grandeza em se criar mistério,
esta música existe para perguntá-lo.
E porque se interroga e não a nós,
ela se justifica e justifica
o próprio interrogar com que se afirma
não quintessência ela, mas raiz profunda
daquilo que será provável ou possível
como consciência, quando houver palavras,
ou quando puramente inúteis forem.[16]

[1] A propósito deste livro de Sena dedicado à música, escreveu Belo: «Jorge de Sena, de momento entre nós, em visita ao seu Reino da Estupidez,publicou, como poeta, Arte de Música. Será um livro mais discursivo que Metamorfoses, mas é sem dúvida uma confirmação e situa o seu autor talvez no lugar de maior poeta vivo português. Não temos quem, a não ser Jorge de Sena, possa fazer empalidecer o reinado de Fernando Pessoa. Mas deixemo-nos de metáforas mais ou menos monárquicas», in Senda da Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 258.

[2] A Crítica de Jorge de Sena. Coord. Joana Matos Frias e Joana Meirim, Lisboa: Biblioteca Nacional, 2022.

[3] Jorge de Sena. Poesia I. Lisboa: Moraes Editores, 1977, p. 84.

[4] Jorge de Sena, «O Poeta e o Crítico na Mesma Pessoa — Um Depoimento sobre Algumas Décadas de Experiência Pessoal». Dialécticas Aplicadas da Literatura, Lisboa: Edições 70. 2ª edição, 1977, p. 243.

[5] Jorge de Sena. Poesia II. Lisboa: Moraes Editores, 1978, p. 161.

[6] in Jorge de Sena, Arte de Música, Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 12.

[7] Jorge de Sena, «Estudo Tipológico de um soneto de Camões». Dialécticas Aplicadas da Literatura, Lisboa: Edições 70. 2ª edição, 1977, p. 95.

[8] Maria Brás Ferreira, «Recensão crítica a “Arte de Música”, de Jorge de Sena», Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 219, Maio 2025, p. 179.

[9] ibidem, p. 177.

[10] p. 178.

[11] A este propósito, vale a pena recordar o estudo de Luís Adriano Carlos, Jorge de Sena e a escrita dos limites: análise das estruturas paragramáticas nos Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, Porto: Universidade do Porto, 1986.

[12] Jorge de Sena, Metamorfoses, Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 133.

[13] Jorge de Sena. Arte de Música. Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 44.

[14] ibidem, p. 36.

[15] ibidem, p. 44.

[16] ibidem, pp. 59-60.

* Doutorando financiado pela FCT (2024.06124.BD). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Email: hugomiguelsantos@edu.ulisboa.pt.

REFERÊNCIA:

Sena, Jorge de. Arte de Música. Lisboa: Assírio & Alvim, 2024.

250. Vasco Gato, O Fim do Contágio

250. Vasco Gato, O Fim do Contágio

Guilherme Berjano Valente

O Fim do Contágio (2022), de Vasco Gato, aponta para o terminar da situação pandémica vivida entre 2020 e o respetivo ano de publicação, 2022. É um livro com alusões às máscaras que nos protegiam do bicho – «E bebemos do ar / todas estas máscaras que nos olham / e falta sempre um gosto a guerra» (p. 7) – e ao tempo em que ficámos todos fechados em casa, aguardando uma libertação social permissiva de passeios e desporto ao ar livre: «A nespereira trouxe os meus frutos / à reclusão dos meus olhos. / […] / Quantos de nós não estarão a fazer o mesmo / sob a película da letargia?» (p. 12). No entanto, não é isto motivo para se rotular o livro como sendo apenas sobre a pandemia, tal seria redutor. É, isso sim, um livro que a partir do cenário pandémico explora os meandros existenciais que apenas se tornaram possíveis devido a um bicho forte e desconhecido e a um enclausuramento solidário de forma a prolongar a espécie humana.

249. Leos Carax, C'est pas moi

249. Leos Carax, C'est pas moi

Rodrigo Cruz

«Work in Progress» é a frase que abre o primeiro plano do novo filme de Leos Carax, fingindo ser um aviso à navegação. Depois de um ponto de interrogação se sobrepor a esta imagem inicial, compreendemos o falso dilema: o filme está feito, «Work is Done», respondemos nós. Quer tenha ou não cumprido a encomenda do Museu Pompidou, que lhe pediu um filme-retrato capaz de responder à pergunta: «Leos, où êtes-vous?» («Leos, onde é que você está?») — o resultado é, inevitavelmente, um auto-retrato. Tudo é familiar para quem conhece a sua obra, mas, desta vez, Carax esconde-se menos — afinal, o tema é ele próprio. Talvez por isso tente desprender-se desse reconhecimento já no título, como que envergonhado. «Oui, ce n’est pas toi, mais c’est à toi» («Sim, não és tu, mas é teu»), respondemos nós.

248. Sebastião da Gama, O Inquieto Verbo do Mar: Poesia Reunida

248. Sebastião da Gama, O Inquieto Verbo do Mar: Poesia Reunida

Guilherme Berjano Valente

Ao ler-se O Inquieto Verbo do Mar (a poesia reunida de Sebastião da Gama), fica-se com a impressão de que a poesia de Gama se caracteriza por alguns temas extremamente recorrentes: a relação do poeta com Deus, a relação do humano com a natureza e as relações eróticas do próprio poeta. Todos os temas, no entanto, subsumem-se a uma obsessão: a própria figura de Deus e a forma como Ele se manifesta. Parece, então, possível descrever a poesia de Gama como uma poesia obsessiva para com um núcleo temático restrito que se vai manifestando, na sua obra, de diversas formas.

247. Pedro Bastos, Souvenirs Satânicos

247. Pedro Bastos, Souvenirs Satânicos

Hugo Miguel Santos

Talvez não seja exagerado começar por assumir que há sempre uma dimensão circunstancial em toda a poesia, por mais que o poeta possa, e em certa medida deva, mascarar ou recriar as provas do crime. No entanto, contam sobretudo as circunstâncias estabelecidas pelo próprio poema, isto é, a intensidade e a verossimilhança daquilo que ele veicula — se quisermos, muito mais do que as causas, importam os seus efeitos.

246. Debra Gettelman, Imagining Otherwise: How Readers Help to Write Nineteenth-Century Novels

246. Debra Gettelman, Imagining Otherwise: How Readers Help to Write Nineteenth-Century Novels

Lourenço Motta Veiga

Starting with the title sentence: the semantics of the word ‘otherwise’ as an adverb[1], within the syntax, can mean both ‘differently’ in the sense of imagining in a totally different way and imagining in a subtly different way than we do. “Otherwise” is a word that only makes sense in the English language, thought of in an integrated way within its context: it is used as an ‘if’ or an ‘else’; it brings to mind the hypothetical question ‘and if?’ and the more peremptory assertion ‘I think differently than that’. Debra Gettelman argues that to think differently, for Austen, Dickens, Woolf and especially George Eliot (the book is divided into five chapters and three of them are dedicated to three novels by Eliot) is a matter of specific stylistic tension. A tension between the reader thinking his own thoughts regarding the novel’s described scenery and plot, and the same reader not thinking differently than the author does or wants the reader to. This is the main crux of the book: the tension between our “subjective” and sometimes outward fancies while reading a novel and the author’s otherwise subtle and sometimes richly reflected patterned intention.

245. Éric Rohmer, Le Genou de Claire

245. Éric Rohmer, Le Genou de Claire

Amanda Santos

O cinema de Éric Rohmer é frequentemente identificado pelo predomínio da fala e do diálogo entre personagens. «Um filme rohmeriano é um em que as pessoas falam, e falam muito», diz Richard Brody para a New Yorker.[1] É um mundo em que «a fala é ação», descreve Molly Haskell.[2] Entretanto, ao reassistir O joelho de Claire (Le Genou de Claire, 1970), mais do que a prevalência da fala, interessou-me o contraste entre a linguagem das palavras e aquela do corpo, entre o que é dito e o que é feito; como se a construção intrincada que os personagens fazem sobre si mesmos, sobre os próprios desejos, se desmontasse a partir de gestos simples, pelo modo como se movem diante da câmera. Em O joelho de Claire, um homem pode reiteradamente dizer que não se interessa mais por mulher alguma além da própria noiva, e logo em seguida abraçar e acariciar sua amiga ambígua, tentar beijar uma adolescente, ou observar obsessivamente outra menina.

244. Filipa Leal, Adrenalina

244. Filipa Leal, Adrenalina

Miguel Zenha

No seu Ways of Worldmaking, Nelson Goodman alega que a literatura não possui «valor de verdade»[i]. Segundo a tese de Goodman, que encontra no conceito «sintomas do estético» de Languages of Art um tratamento exaustivo, a literatura não é redutível a um conteúdo proposicional, ou seja, em rigor não declara coisa alguma. Nesse sentido, Goodman vê como imprestável a oposição entre realidade e ficção: olhar para a literatura com uma grelha que opõe verdadeiro e falso, pondo factos do lado verdadeiro e ficção do lado falso, não faz grande sentido. Goodman considera a arte uma maneira de interpretar tão legítima como, por exemplo, a ciência. Mas a legitimidade da literatura afere-se com dificuldade recorrendo a categorias críticas empenhadas em medir graus de conformidade da literatura face à realidade ou à verdade. De se sugerir que «a realidade» não é decisiva quando lemos poesia não se segue conceder poderes mágicos a poemas: trata-se, sim, de defender a ideia de que estamos perante uma forma particular, que encaro aliás como circunscrita, de descrever coisas a que a dado momento queremos prestar atenção. Um corolário da tese de Goodman, parece-me, é considerar «o quotidiano» uma categoria crítica inútil. Se entendermos por ‘quotidiano’ aquilo que um poeta—na verdade, qualquer pessoa—experiencia, i.e., o que experimenta e imagina, tal não quererá dizer grande coisa. Estaríamos a equiparar poetas tão diferentes como Hölderlin e Cesário Verde sem se perceber o motivo, uma vez que aquilo que um poeta faz é justamente escrever acerca daquilo que experiencia. E dessa forma apelar ao quotidiano seria, na melhor das hipóteses, redundante.

243. Comissão de Festas Populares do Teatro Experimental do Porto e da ASSéDIO - Companhia de Teatro, As grandes comemorações...

243. Comissão de Festas Populares do Teatro Experimental do Porto e da ASSéDIO - Companhia de Teatro, As grandes comemorações...

Hugo Miguel Santos

Muito se tem escrito sobre o falhanço quase generalizado das mais diversas celebrações dos cinquenta anos do 25 de Abril e dos quinhentos anos do nascimento de Camões. Datas deste jaez têm uma função simbólica e profundamente identitária que mereceria ser discutida fora dos trâmites habituais da discussão político-partidária.

242. Ricardo Gil Soeiro, Lições da Miragem

242. Ricardo Gil Soeiro, Lições da Miragem

Guilherme Berjano Valente

Ricardo Gil Soeiro, em Lições da Miragem (2024), posiciona-se como um poeta que regista o que vê no mundo, retirando, deste registo, lições. As coisas que vê, no entanto, são miragens, ou seja, imagens que projeta sobre a realidade. Como nos seus outros livros, os poemas questionam temas comuns da poesia e da vida, de forma autêntica e inovadora. Como é esperado de Gil Soeiro, e seguindo os passos de poetas como António Franco Alexandre e Carlos de Oliveira, o livro possui uma arquitetura inquebrável que leva o leitor a experienciar cada poema não como uma coisa isolada, mas como um texto que se desenvolve e se significa devido ao texto que o precede. O poeta, assim, encaminha o leitor até aos últimos versos, onde se descreve o próprio livro:

Eis o que foi e o que será.
Os que estiveram e os que foram.
Os que nunca virão.

O resto são palavras:
curta distância até à morte. (p. 74)

241. José Carlos Soares, Hesitação da Luz

241. José Carlos Soares, Hesitação da Luz

Hugo Miguel Santos

O mais recente título de José Carlos Soares, Hesitação da Luz (Averno, 2024), é uma espécie de síntese da sua poética iniciada, em 1981, com Os Sulcos Leves, livro composto a quatro mãos com Carlos Marques Queirós.

240. Paolo Sorrentino, The Young Pope

240. Paolo Sorrentino, The Young Pope

João Duque

Na série Young Pope (2016), Paolo Sorrentino cria a possibilidade de um papa jovem, americano, ultraconservador e, visto de perto, talvez até ateu. Lenny Belardo ou Papa Pio XIII (Jude Law) recupera a sede gestatória, a tiara papal, o beija-pé, e muitas outras tradições envoltas em paramentos faustosos. Mas há nessas escolhas tradicionalistas um movimento interessante. O Papa não se serve de tudo isso para se exibir, em vez disso esconde-se: decide não aparecer em público e não se deixa fotografar.

239. Golgona Anghel, A Forma Custa Caro — Exercícios inconformados

239. Golgona Anghel, A Forma Custa Caro — Exercícios inconformados

Miguel Zenha

A Forma Custa Caro consiste num conjunto de onze ensaios que medem o pulso a uma certa contemporaneidade, traçando para o efeito um ponto de situação agudo que incide principalmente sobre literatura. Nesse sentido, o livro privilegia poetas portugueses: de Fernando Pessoa, Mário Cesariny, Ruy Belo e Al Berto — Golgona Anghel tem monografias sobre este último, designadamente Eis-me Acordado Muito Tempo Depois de Mim — uma biografia de Al Berto (Quasi Edições, 2006) e Cronos Decide Morrer — leituras do tempo em Al Berto (Língua Morta, 2013) — a poetas vivos como Rui Pires Cabral e Pedro Mexia. Organizado em quatro partes — «Forma e formato»; «Exercícios inconformados»; «Forma e per-formatividade» e «A forma em ruínas» — o livro propõe-se problematizar a ideia de legitimação da literatura.

238. Nuno Guimarães, Entre Sílabas e Lavas

238. Nuno Guimarães, Entre Sílabas e Lavas

Guilherme Berjano Valente

A poesia de Nuno Guimarães parece-nos ser bem descrita pelo início da música «Pronúncia do Norte», dos GNR.: «Há um prenúncio de morte / Lá do fundo d’onde eu venho». O motivo deste prenúncio é tanto a noção de finitude que se sente ao ler os seus poemas, pautados por imagens estéreis e secas, como o facto de o poeta ter morrido aos 30 anos. Entre Sílabas e Lavas (2024) – livro que reúne a sua poesia – apresenta-se, então, como um fragmento que se crava contra a passagem do tempo, tentando combater a morte, enquanto transparece a ideia da sua própria esterilidade e finitude próxima.

237. Marcos Foz, Vaca Preta

237. Marcos Foz, Vaca Preta

Miguel Zenha

Na introdução a Slow Learner, Thomas Pynchon defende que «é errado começar com um tema, símbolo ou outro agente unificador abstracto e tentar depois forçar personagens ou eventos a conformarem-se a isso» (p. 12)[1]. Não querendo discutir o mérito específico desse ponto de vista—Pynchon estava a referir-se a «Entropy», um dos contos que integra Slow Learner—parece-me, no entanto, que a observação descreve adequadamente o pecado original de Vaca Preta, livro de Marcos Foz editado em 2021 numa parceria entre a Bestiário e a Livraria Snob.

236. André Osório, Sala de Operações

236. André Osório, Sala de Operações

João Duque

Da observação à operação parece não haver uma grande distância, apenas a da outra face da moeda. No primeiro livro de poesia de André Osório, Observação da Gravidade, a fixação da memória na casa da nossa identidade é o que fica gravado na operação da escrita. Esta operação é a luta agónica contra o esquecimento e a morte que nos acompanham ao longo da viagem da vida, na qual aquilo que carregamos se vai perdendo e gastando pelo caminho. O acto da escrita está longe do monumento horaciano, é uma operação interior, é o acto de abrir as janelas para dentro e percorrer o palácio da memória. O acto de recordar é semelhante à apanha da conquilha desse primeiro livro: apanhar o que está agarrado ao corpo, tendo como consequência a marca que permanece gravada, decalcada. O que se apanha, alimenta, mas o que fica gravado também se come com os olhos, permanecendo mais tempo. Há uma simbiose entre o eu e o mundo, uma confusão que inclui a própria poesia.

235. Anne Cova, Vanda Gorjão, Ana Isabel Freire, Ana Costa Lopes, Natividade Monteiro (org.), Mulheres e Associativismo em Portugal, 1914-1974

235. Anne Cova, Vanda Gorjão, Ana Isabel Freire, Ana Costa Lopes, Natividade Monteiro (org.), Mulheres e Associativismo em Portugal, 1914-1974

Elisa Fauth

O livro Mulheres e Associativismo em Portugal, 1914-1974, organizado por Anne Cova, Vanda Gorjão, Ana Isabel Freire, Ana Costa Lopes e Natividade Monteiro é resultado do projeto de investigação homónimo, financiado pela Fundação de Ciência e Tecnologia (FCT). Este compêndio reúne as comunicações apresentadas pela equipa do projeto em sua conferência final. Tendo como contributo inovador a interdisciplinaridade, apresenta análises históricas e sociológicas do associativismo feminino em Portugal ao longo do século XX, examinando minuciosamente o funcionamento das organizações femininas e explorando aspetos biográficos de várias das suas dirigentes. A obra está dividida em três partes: as «Associações fundadas entre 1914-1919», com cinco capítulos; as «Associações de oposição ao Estado Novo criadas entre 1935 e 1973», com dois capítulos; e as «Associações nascidas na década de 1960 e em atividade no 25 de Abril de 1974», com dois capítulos.

234.  Raymond Aron, Liberty and Equality

234. Raymond Aron, Liberty and Equality

Bernardo Santos

Within the tradition of modern democratic thought, it is common to encounter a multifaceted divide between the claims of two concepts that, although distinct, cannot be completely separated: liberty and equality. Since they are the cornerstone of democratic thought in itself, this apparent divide usually involves more of a balancing between both sets of claims rather than an outright opposition. Still, this tension has given rise to crucial conceptual and ideological distinctions. For instance, we find it in Rousseau’s and Locke’s variants of social contract theory, Constant’s distinction between ancient and modern liberties, socialism’s critique of capitalism, and more recently in the competing theories of justice put forth by egalitarianism and liberalism. The relation between liberty and equality is, thus, a core preoccupation of modern political philosophy, and liberal-democratic regimes continue to grapple with its pervasive challenges: should the claims of equality apply only to formal political and juridical liberties (namely, as equal rights), or should they extend to the substantial socioeconomic realm, through redistributive policies?

233. Tomás McAuley, Nanette Nielsen and Jerrold Levinson (eds.), The Oxford Handbook of Western Music and Philosophy

233. Tomás McAuley, Nanette Nielsen and Jerrold Levinson (eds.), The Oxford Handbook of Western Music and Philosophy

Inês Morais

Reviewing involves significant selection, simplification, and inevitable omission. Reviewing a book with 1134 pages requires (when one finally writes) considerable abstraction from the actual essays, theses, and arguments the book presents. I make mostly general comments, with the recommendation that the Handbook is read and used to inform teaching in these areas. I’ve learnt plenty.

232. Pedro Costa, As Filhas do Fogo

232. Pedro Costa, As Filhas do Fogo

Rodrigo Cruz Silva

A frase «Um dia saberemos porque vivemos e porque sofremos» sobressai no filme mais recente de Pedro Costa[1] e poderia ser escutada em qualquer uma das suas obras. Em As Filhas do Fogo, em vez da entoação recalcada das figuras do bairro das Fontaínhas, ouvimos a toada de três actrizes-cantoras[2] acompanhada pela melodia do ensemble Os músicos do Tejo. Os nove minutos desta curta-metragem musical abrem a porta a um género muitas vezes associado a uma técnica opulenta ou expositiva. No entanto, Costa, com o refreamento que habitualmente aplica à imagem e à palavra, lima sobriamente a música para criar um quarto escuro ainda mais enigmático.