244. Filipa Leal, Adrenalina

244. Filipa Leal, Adrenalina

Miguel Zenha

No seu Ways of Worldmaking, Nelson Goodman alega que a literatura não possui «valor de verdade»[i]. Segundo a tese de Goodman, que encontra no conceito «sintomas do estético» de Languages of Art um tratamento exaustivo, a literatura não é redutível a um conteúdo proposicional, ou seja, em rigor não declara coisa alguma. Nesse sentido, Goodman vê como imprestável a oposição entre realidade e ficção: olhar para a literatura com uma grelha que opõe verdadeiro e falso, pondo factos do lado verdadeiro e ficção do lado falso, não faz grande sentido. Goodman considera a arte uma maneira de interpretar tão legítima como, por exemplo, a ciência. Mas a legitimidade da literatura afere-se com dificuldade recorrendo a categorias críticas empenhadas em medir graus de conformidade da literatura face à realidade ou à verdade. De se sugerir que «a realidade» não é decisiva quando lemos poesia não se segue conceder poderes mágicos a poemas: trata-se, sim, de defender a ideia de que estamos perante uma forma particular, que encaro aliás como circunscrita, de descrever coisas a que a dado momento queremos prestar atenção. Um corolário da tese de Goodman, parece-me, é considerar «o quotidiano» uma categoria crítica inútil. Se entendermos por ‘quotidiano’ aquilo que um poeta—na verdade, qualquer pessoa—experiencia, i.e., o que experimenta e imagina, tal não quererá dizer grande coisa. Estaríamos a equiparar poetas tão diferentes como Hölderlin e Cesário Verde sem se perceber o motivo, uma vez que aquilo que um poeta faz é justamente escrever acerca daquilo que experiencia. E dessa forma apelar ao quotidiano seria, na melhor das hipóteses, redundante.

243. Comissão de Festas Populares do Teatro Experimental do Porto e da ASSéDIO - Companhia de Teatro, As grandes comemorações...

243. Comissão de Festas Populares do Teatro Experimental do Porto e da ASSéDIO - Companhia de Teatro, As grandes comemorações...

Hugo Miguel Santos

Muito se tem escrito sobre o falhanço quase generalizado das mais diversas celebrações dos cinquenta anos do 25 de Abril e dos quinhentos anos do nascimento de Camões. Datas deste jaez têm uma função simbólica e profundamente identitária que mereceria ser discutida fora dos trâmites habituais da discussão político-partidária.

242. Ricardo Gil Soeiro, Lições da Miragem

242. Ricardo Gil Soeiro, Lições da Miragem

Guilherme Berjano Valente

Ricardo Gil Soeiro, em Lições da Miragem (2024), posiciona-se como um poeta que regista o que vê no mundo, retirando, deste registo, lições. As coisas que vê, no entanto, são miragens, ou seja, imagens que projeta sobre a realidade. Como nos seus outros livros, os poemas questionam temas comuns da poesia e da vida, de forma autêntica e inovadora. Como é esperado de Gil Soeiro, e seguindo os passos de poetas como António Franco Alexandre e Carlos de Oliveira, o livro possui uma arquitetura inquebrável que leva o leitor a experienciar cada poema não como uma coisa isolada, mas como um texto que se desenvolve e se significa devido ao texto que o precede. O poeta, assim, encaminha o leitor até aos últimos versos, onde se descreve o próprio livro:

Eis o que foi e o que será.
Os que estiveram e os que foram.
Os que nunca virão.

O resto são palavras:
curta distância até à morte. (p. 74)

241. José Carlos Soares, Hesitação da Luz

241. José Carlos Soares, Hesitação da Luz

Hugo Miguel Santos

O mais recente título de José Carlos Soares, Hesitação da Luz (Averno, 2024), é uma espécie de síntese da sua poética iniciada, em 1981, com Os Sulcos Leves, livro composto a quatro mãos com Carlos Marques Queirós.

240. Paolo Sorrentino, The Young Pope

240. Paolo Sorrentino, The Young Pope

João Duque

Na série Young Pope (2016), Paolo Sorrentino cria a possibilidade de um papa jovem, americano, ultraconservador e, visto de perto, talvez até ateu. Lenny Belardo ou Papa Pio XIII (Jude Law) recupera a sede gestatória, a tiara papal, o beija-pé, e muitas outras tradições envoltas em paramentos faustosos. Mas há nessas escolhas tradicionalistas um movimento interessante. O Papa não se serve de tudo isso para se exibir, em vez disso esconde-se: decide não aparecer em público e não se deixa fotografar.

239. Golgona Anghel, A Forma Custa Caro — Exercícios inconformados

239. Golgona Anghel, A Forma Custa Caro — Exercícios inconformados

Miguel Zenha

A Forma Custa Caro consiste num conjunto de onze ensaios que medem o pulso a uma certa contemporaneidade, traçando para o efeito um ponto de situação agudo que incide principalmente sobre literatura. Nesse sentido, o livro privilegia poetas portugueses: de Fernando Pessoa, Mário Cesariny, Ruy Belo e Al Berto — Golgona Anghel tem monografias sobre este último, designadamente Eis-me Acordado Muito Tempo Depois de Mim — uma biografia de Al Berto (Quasi Edições, 2006) e Cronos Decide Morrer — leituras do tempo em Al Berto (Língua Morta, 2013) — a poetas vivos como Rui Pires Cabral e Pedro Mexia. Organizado em quatro partes — «Forma e formato»; «Exercícios inconformados»; «Forma e per-formatividade» e «A forma em ruínas» — o livro propõe-se problematizar a ideia de legitimação da literatura.

238. Nuno Guimarães, Entre Sílabas e Lavas

238. Nuno Guimarães, Entre Sílabas e Lavas

Guilherme Berjano Valente

A poesia de Nuno Guimarães parece-nos ser bem descrita pelo início da música «Pronúncia do Norte», dos GNR.: «Há um prenúncio de morte / Lá do fundo d’onde eu venho». O motivo deste prenúncio é tanto a noção de finitude que se sente ao ler os seus poemas, pautados por imagens estéreis e secas, como o facto de o poeta ter morrido aos 30 anos. Entre Sílabas e Lavas (2024) – livro que reúne a sua poesia – apresenta-se, então, como um fragmento que se crava contra a passagem do tempo, tentando combater a morte, enquanto transparece a ideia da sua própria esterilidade e finitude próxima.

237. Marcos Foz, Vaca Preta

237. Marcos Foz, Vaca Preta

Miguel Zenha

Na introdução a Slow Learner, Thomas Pynchon defende que «é errado começar com um tema, símbolo ou outro agente unificador abstracto e tentar depois forçar personagens ou eventos a conformarem-se a isso» (p. 12)[1]. Não querendo discutir o mérito específico desse ponto de vista—Pynchon estava a referir-se a «Entropy», um dos contos que integra Slow Learner—parece-me, no entanto, que a observação descreve adequadamente o pecado original de Vaca Preta, livro de Marcos Foz editado em 2021 numa parceria entre a Bestiário e a Livraria Snob.

236. André Osório, Sala de Operações

236. André Osório, Sala de Operações

João Duque

Da observação à operação parece não haver uma grande distância, apenas a da outra face da moeda. No primeiro livro de poesia de André Osório, Observação da Gravidade, a fixação da memória na casa da nossa identidade é o que fica gravado na operação da escrita. Esta operação é a luta agónica contra o esquecimento e a morte que nos acompanham ao longo da viagem da vida, na qual aquilo que carregamos se vai perdendo e gastando pelo caminho. O acto da escrita está longe do monumento horaciano, é uma operação interior, é o acto de abrir as janelas para dentro e percorrer o palácio da memória. O acto de recordar é semelhante à apanha da conquilha desse primeiro livro: apanhar o que está agarrado ao corpo, tendo como consequência a marca que permanece gravada, decalcada. O que se apanha, alimenta, mas o que fica gravado também se come com os olhos, permanecendo mais tempo. Há uma simbiose entre o eu e o mundo, uma confusão que inclui a própria poesia.

235. Anne Cova, Vanda Gorjão, Ana Isabel Freire, Ana Costa Lopes, Natividade Monteiro (org.), Mulheres e Associativismo em Portugal, 1914-1974

235. Anne Cova, Vanda Gorjão, Ana Isabel Freire, Ana Costa Lopes, Natividade Monteiro (org.), Mulheres e Associativismo em Portugal, 1914-1974

Elisa Fauth

O livro Mulheres e Associativismo em Portugal, 1914-1974, organizado por Anne Cova, Vanda Gorjão, Ana Isabel Freire, Ana Costa Lopes e Natividade Monteiro é resultado do projeto de investigação homónimo, financiado pela Fundação de Ciência e Tecnologia (FCT). Este compêndio reúne as comunicações apresentadas pela equipa do projeto em sua conferência final. Tendo como contributo inovador a interdisciplinaridade, apresenta análises históricas e sociológicas do associativismo feminino em Portugal ao longo do século XX, examinando minuciosamente o funcionamento das organizações femininas e explorando aspetos biográficos de várias das suas dirigentes. A obra está dividida em três partes: as «Associações fundadas entre 1914-1919», com cinco capítulos; as «Associações de oposição ao Estado Novo criadas entre 1935 e 1973», com dois capítulos; e as «Associações nascidas na década de 1960 e em atividade no 25 de Abril de 1974», com dois capítulos.

234.  Raymond Aron, Liberty and Equality

234. Raymond Aron, Liberty and Equality

Bernardo Santos

Within the tradition of modern democratic thought, it is common to encounter a multifaceted divide between the claims of two concepts that, although distinct, cannot be completely separated: liberty and equality. Since they are the cornerstone of democratic thought in itself, this apparent divide usually involves more of a balancing between both sets of claims rather than an outright opposition. Still, this tension has given rise to crucial conceptual and ideological distinctions. For instance, we find it in Rousseau’s and Locke’s variants of social contract theory, Constant’s distinction between ancient and modern liberties, socialism’s critique of capitalism, and more recently in the competing theories of justice put forth by egalitarianism and liberalism. The relation between liberty and equality is, thus, a core preoccupation of modern political philosophy, and liberal-democratic regimes continue to grapple with its pervasive challenges: should the claims of equality apply only to formal political and juridical liberties (namely, as equal rights), or should they extend to the substantial socioeconomic realm, through redistributive policies?

233. Tomás McAuley, Nanette Nielsen and Jerrold Levinson (eds.), The Oxford Handbook of Western Music and Philosophy

233. Tomás McAuley, Nanette Nielsen and Jerrold Levinson (eds.), The Oxford Handbook of Western Music and Philosophy

Inês Morais

Reviewing involves significant selection, simplification, and inevitable omission. Reviewing a book with 1134 pages requires (when one finally writes) considerable abstraction from the actual essays, theses, and arguments the book presents. I make mostly general comments, with the recommendation that the Handbook is read and used to inform teaching in these areas. I’ve learnt plenty.

232. Pedro Costa, As Filhas do Fogo

232. Pedro Costa, As Filhas do Fogo

Rodrigo Cruz Silva

A frase «Um dia saberemos porque vivemos e porque sofremos» sobressai no filme mais recente de Pedro Costa[1] e poderia ser escutada em qualquer uma das suas obras. Em As Filhas do Fogo, em vez da entoação recalcada das figuras do bairro das Fontaínhas, ouvimos a toada de três actrizes-cantoras[2] acompanhada pela melodia do ensemble Os músicos do Tejo. Os nove minutos desta curta-metragem musical abrem a porta a um género muitas vezes associado a uma técnica opulenta ou expositiva. No entanto, Costa, com o refreamento que habitualmente aplica à imagem e à palavra, lima sobriamente a música para criar um quarto escuro ainda mais enigmático.

231. Manuel de Freitas, Levar Caminho II

231. Manuel de Freitas, Levar Caminho II

Miguel Zenha

Levar Caminho II prossegue a reunião da poesia de Manuel de Freitas, indo desta feita de Levadas (2001–2002) a Estádio (2007). Comece por dizer-se que se confirma a ideia de que esta poesia dificilmente poderia estar mais longe de, se se quiser, querer transfigurar o quotidiano ou a realidade. Na verdade, Manuel de Freitas reputaria de risível qualquer tentativa em transfigurar o que quer que fosse. Daí não haver lugar a experimentalismos linguísticos — é também notória a contenção metafórica — numa poesia assente numa noção elementar e trivial de experiência. Não são, de resto, observáveis grandes manifestações de desobediência e angústia, nesta que se pode considerar uma escrita que funciona sobretudo enquanto decomposição desapiedada.

230. Lau Noah, A Dos

230. Lau Noah, A Dos

João Maria Carvalho

Hoje nasceu uma voz no início dos tempos. Nasceu na Catalunha de todos os lugares da Terra. Tem um nome em todas as línguas e em língua nenhuma. Lau Noah. A nossa boca abre-se quando o pronunciamos. É toda vento. As consoantes são poucas, e servem apenas a impulsão do sopro, prolongado no «h» final.

229. Jean-Luc Godard, Film annonce du film qui n’existera jamais: «Drôles de guerres»

229. Jean-Luc Godard, Film annonce du film qui n’existera jamais: «Drôles de guerres»

Rodrigo Cruz Silva

A curta-metragem Film annonce du film qui n’existera jamais: «Drôles de guerres» (2023)[1] é o último trabalho realizado por Jean-Luc Godard e foi lançada postumamente. Este trailer, que teve direito ao seu próprio trailer, é um esboço que reúne ideias, imagens e sons, e que se aproxima mais de um comentário de vinte minutos sobre cinema do que de um «annonce». Distancia-se, assim, de outros filmes de Godard sobre os seus próprios trabalhos: enquanto os Bande-Annonce divulgaram directamente algumas das suas obras, e os filmes-rodapé, como Scénario du Film ‘Passion’ (1982) ou Petites Notes à propos du film ‘Je vous salue, Marie’ (1983), são lições sobre cinema a partir das obras às quais fazem referência, este Film annonce distingue-se porque o filme referenciado não existe.

228. Bernardo Salgado, Do Soneto I ao Soneto 40

228. Bernardo Salgado, Do Soneto I ao Soneto 40

Maria Brás Ferreira

Do Soneto I ao Soneto 40 trata-se, como o título indica, de um conjunto de quarenta sonetos que Bernardo Salgado reúne agora em livro, após ter produzido envelopes de dez sonetos cada — Cadernos A, B, C e D ainda disponíveis neste formato —, publicações da chancela da 14 Versos, editora fundada pelo autor e por Joana Salgado. O soneto é uma forma lírica que conheceu ao longo dos séculos uma série de variações, como se fosse, por si, um medidor do tempo e do espaço, medidor da circunstância mais aparentemente insignificante, da linguagem mais privada, até se tivermos em conta o modo avulso e direccionado em que estes textos tradicionalmente se distribuíam. Ora, a escrita e a publicação de sonetos hoje produzem invariavelmente um efeito de suspensão do tempo ou, na melhor das hipóteses, a actuação da força furiosa de um contra-tempo. Um que se prolonga, todavia, além do incidente meramente ocasional e contingente para constituir uma carta-postal a chegar a alguma parte e que, tratando-se de um projecto editorial e autoral, detém um carácter colectivo e público sobre o qual importa reflectir. São textos que visam, com efeito, ser lidos, escutados e respondidos. Poemas que intentam ir além de uma aparição reprodutível, de uma publicidade imediata e descartável, excedendo os eventos em que tantas vezes a literatura (lamentavelmente talvez já nem como palavrão este termo incomode) se acha hoje confundida, obliterada e, afinal, desmerecida. Um acidente que, assim, detenha um pai, criador assumido, com a sua assinatura responsável, o cunho dessa espécie de orgulho condizente com a árdua faina de um ofício que se ama. De tudo isto é feito o livro — a ideia e o ideal de publicação — de Bernardo Salgado. Não se trata, pois, tão-somente de reconhecer, pelo formato do envelope que precedeu o do livro, o indício e o signo do diálogo e da correspondência. O envelope é já parte do livro, tal como os gestos e a vida são parte da obra por vir. Era, assim, já de obra que se tratavam os envelopes, o que nos conduz a um aspecto que parece fundamental para a poética de Salgado: a indistinção, aparentemente tão natural quanto louvável, entre a vida e a poesia, a fala e o verso (o autor faz regularmente leituras dos próprios sonetos), o escrito e o rasurado que a regra impõe, o que é endereçado a um destinatário particular e o que se publica e distribui por livrarias para que qualquer pessoa o leia e, no limite, o extravie. Também os acasos e os malogros são particulares, excepcionais e intransmissíveis no modo como penetram o real, alterando-o, obrigando-o a investir-se numa nova ordem. Assim, se a vida é a matéria bravia que a obra pode ou não enformar, a primeira é na segunda surpreendida necessariamente enquanto coisa outra, matéria transformada, transfigurada (porque convulsa, em busca de sentido) e partilhável: «Uma cenografia bem quieta/ Deixando que outros Vos rodem também» (12). Aquele que diz — são sonetos ditos, no limiar em que a voz é induzida à fisicalidade de uma boca que mexe e à melodia de um som que irrompe — ser a «Vossa Cobaia Milagrosa», vossa, isto é, dessa «Voz Todo-Poderosa», começa por instaurar um regime particular, senão mesmo excepcional, entre duas entidades, para tornar partilhável e disponível aos outros essa mesma figura abstracta e ideal que determina a sua existência e função. A partilha decorre de uma vontade de atenuar a sorte, o que não se faz por qualquer espécie de cálculo ou medição, mas pela soma e pelo acrescento indefinido de mais ocasos, de outra(s) sorte(s) de sortes: «Que outros vomitem Vosso Vaivém: / Abrandai e sossegai minha Roleta.» (idem).

227. Werner Herzog, The Twilight World

227. Werner Herzog, The Twilight World

Francisco Antunes

Em Dezembro de 1944, as tropas japonesas abandonam a ilha de Lubang, nas Filipinas, deixando para trás o tenente Hiroo Onoda, cujas ordens são as de defender sozinho a ilha, recorrendo a tácticas de guerrilha, até ao eventual regresso do Exército Imperial. As regras são, a partir daquele momento, determinadas exclusivamente por si. Em Setembro do ano seguinte, o Imperador japonês assina a rendição oficial do país e acaba o conflito mundial; a ordem de capitulação nunca chega a Lubang. Em Fevereiro de 1974, Onoda é encontrado, crendo ainda na perpetuação de uma guerra que terminara três décadas antes.

226. Nadejda Mandelstam, Contra toda a Esperança

226. Nadejda Mandelstam, Contra toda a Esperança

André Osório

Escrito em 1970, Contra toda a Esperança, de Nadejda Mandelstam, recém-traduzido em 2023 por Ana Matoso e Larissa Shotropa, tem a forma de um documento ficcional ou de um romance ensaístico, de quem, à força de esquecer a sua individualidade em nome de um falso progressismo histórico, excluiu o seu «eu» da arte narrativa, talvez, de um certo modo, para recuperar o próprio presente anulado em medo e perseguições (por oficiais ou pela própria comunidade, moralmente vigiando-se a si mesma), condição primeira para se poder sequer nomear uma individualidade, talvez para prestar testemunho, trazer à memória, sem adornos ou sentimentalidade, a verdade crua e nua que ficou subterrada do regime estalinista por vinte seis anos.

225. José Maria Vieira Mendes, O Pior É Que Fica

225. José Maria Vieira Mendes, O Pior É Que Fica

Guilherme Berjano Valente

O Pior é Que Fica (2023), de José Maria Vieira Mendes, é um livro que tem um prefácio e sete capítulos (cada um é uma peça teatral). Estes, que numa primeira leitura parecem estar ligados, apenas, tematicamente – questões de finitude, de materialidade, etc. –, quando relidos de acordo com a forma apresentada na contracapa – «o livro inclina a literatura dramática para a leitura em voz baixa» –, levam-nos a considerar a obra como um romance, começado com o nascimento de uma frase, prolongado através da sua luta em relação à sua finitude, e terminado num suspiro que a esvazia de dores e complicações.