Pedro Beirão
Dos Benefícios dum Vendido no Reino dos Bonifácios é o primeiro álbum da enigmática Banda do Casaco, lançado em 1975 e reeditado em 2022. Tal como a própria banda, o álbum surge de um mundo em ebulição, marcado por um experimentalismo transversal às mais variadas áreas da vida: na procura de novos sistemas de organização política, baseados na autodeterminação dos povos em oposição ao imperialismo, na procura de novos sistemas de organização social por parte de sectores da sociedade historicamente discriminados, na procura de novos sistemas de organização artística, ou até na procura da transposição das próprias fronteiras planetárias. Foi precisamente no Portugal em pleno período revolucionário que a Banda do Casaco nos propôs um destemido projecto musical com uma tão mais ousada premissa narrativa: e se Fausto, o mefistofélico, tivesse vivido o PREC?
Amândio Reis
A obra de estreia de Manuel Bivar aparece como um objecto não identificado nos céus da ficção portuguesa contemporânea. Ainda assim, ou por isso mesmo, ela leva o seu autor a partilhar pelo menos uma coisa com alguns outros, como Ana Teresa Pereira, por exemplo, que é certa maneira de estar absolutamente só. Mas esta solidão não será uma arrogância, ainda que tenha lugar «por entre a gente» e na ronda dos certames literários ocasionais. Ela decorre menos de uma escolha do que de uma inevitabilidade, ou um destino. É que Manuel Bivar e Ana Teresa Pereira cultivam o seu ofício com demasiada verdade em relação a si mesmos, o que significa que não sabem estar ao serviço de outrem nem do gosto da época, e com demasiada humildade em relação ao lugar fragilíssimo da sua obra no mundo, o que faz com que não tenham jeito para conversar sobre ela, nem sejam interessantes nem úteis nos círculos sociais da literatura e da cultura.
Miguel Zenha
Letters to Camondo continues the central premise of The Hare with Amber Eyes (2010): to talk about people and history as from things or objects. In The Hare with Amber Eyes, we have a collection, mainly assembled in the mid-19th century, of more than two hundred netsukes, which strolled around Paris, Vienna, Tokyo and London, while in Letters to Camondo we start with Moïse de Camondo’s house and decorative arts collection as leading figures. Still, the common ground between both books is especially noticeable if we find Letters to Camondo trying to answer the question from the final pages of The Hare with Amber Eyes, “why keep things, why archive intimacies?”.
Teresa Esteves da Fonseca
«Prodígio» foi a palavra que começou por ser usada quando Declan McKenna, com apenas 16 anos, apareceu no cenário musical britânico. Agora, com 22, parece já não ser tão adequado, não porque tenha perdido o brilhantismo musical que o distingue de tantos outros, mas porque quando se chega a um certo patamar deixa-se de ser uma promessa, e passa-se a ser um artista consistente, porém orgânico e em crescimento constante. McKenna já deixou de ser uma promessa. É agora um músico de provas dadas: dois álbuns lançados, concertos pelo mundo fora, e cerca de três milhões de ouvintes mensais no Spotify.
Tiago Ramos
When my father passed, I wanted nothing more than my mother’s happiness. For what kind of man would I be if I did not help my mother? If I did not save her?
A epígrafe corresponde à frase que serve de preâmbulo à mais recente longa-metragem de Jane Campion, The Power of the Dog (2021). A frase é enunciada, por meio da voz-sobreposta, ainda no decorrer da sequência de créditos inicial. A figura responsável pelo enunciado é Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee), um jovem abúlico que vive com a sua mãe num povoado isolado nas planícies de Montana, em 1925. O facto de ser Peter quem tem o controle da voz-sobreposta é um dado relevante, na medida em que sinaliza, antes de a acção começar, qual é a personagem que tem poder sobre o discurso fílmico. Desta forma, a narração preambular cumpre vários propósitos. Por um lado, estabelece Peter na qualidade de narrador, o que lhe confere um estatuto de autoridade no contexto da economia narrativa. Por outro, delineia, de forma lacónica, as motivações do herói da trama – isto é, proteger a mãe e cumprir-se enquanto homem.
Duarte Bénard da Costa
The title of this academic work renders its content clear. An augmented rendering in French of Cynthia Gamble’s English published works between 2000 and 2016, Voix entrelacées de Proust et de Ruskin (2021) is mainly in line with her previous work on John Ruskin and Marcel Proust, Proust as Interpreter of Ruskin: The Seven Lamps of Translation (2002). Here, Gamble presents us with a thorough analysis of the interconnections between John Ruskin and Marcel Proust, a subject on which she has proven to be an authority. The interweaving relations of both authors exist in several aspects of their life and of their work, especially Proust’s, who, according to Gamble, is the ‘spiritual heir of Ruskin’ (2021: 10). This book deals with questions that pervade some of Gamble’s academic work, such as the authorship of Proust’s translations of Ruskin and the influences Ruskin had on Proust.
Tiago Fonseca
Dimitris Papaioannou põe em cena espectáculos em que a imagem e o movimento são o foco principal. A coordenação e interacção de corpos humanos é importante, mas isso não o leva a considerar-se um coreógrafo de dança. Normalmente, está preocupado com o corpo não apenas no espaço, mas em relação com outros objectos que levantem problemas. Começou por ser pintor e desenhador antes de se dedicar à arte performativa, e esse ímpeto inicial para criar imagens sobre uma superfície plana está muito presente no espectáculo agora em digressão, exibido no CCB nos passados dias 10 e 11 de Dezembro.
Inês Ramos
Na sequência de A Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso (2015), A Metamorfose dos Pássaros (2020) é um filme autobiográfico centrado nas figuras da avó e da mãe de Catarina Vasconcelos. Beatriz e Ana, respectivamente, são abordadas de um modo que evoca «as mães de todas as mães» e excede as circunstâncias particulares da realizadora e do seu pai, ambas definidas pelo luto. Num primeiro momento, a acção avança acompanhando a família de Beatriz e Henrique, a correspondência trocada entre o casal e o crescimento dos filhos, sobretudo de Jacinto, o pai de Catarina. O foco no passado convive com as considerações que o narrador tece a partir do presente. Não há muitos diálogos entre as personagens, por isso, essas considerações ganham especial relevância na condução da perspectiva do espectador. Ainda mais porque partem de um conhecimento profundo dos acontecimentos para sugerir modos mais gerais de entender a vida, a morte e as relações humanas. Num movimento filosófico que assinala a passagem para o segundo momento do filme, o narrador compara Beatriz às árvores mais antigas da floresta, defendendo que as mães permanecem vivas na memória de quem lhes perserva as raízes. No fundo, para defender que a morte não anula a influência que as pessoas exercem sobre os outros, mesmo quando passa muito tempo e se renovam gerações.
Lauro Reis
Masaoka Shiki faz parte do quarteto de mestres de haiku japoneses, juntamente com Matsuo Bashô, Yosa Buson e Kobayashi Issa. Desse grupo, Shiki é o mais contemporâneo, o que viveu menos tempo e o que compôs mais poesia. É também o mais iconoclasta dos quatro, especialmente pela sua interpretação considerada blasfema da obra do seu precursor Matsuo Bashô. Numa época em que este havia sido elevado a estatuto divino pelo Estado, Shiki argumentou que era Buson, e não Bashô, o que detinha maior qualidade poética. Todavia, uma das contingências interessantes da vida de Shiki é o facto de ser o único membro do quarteto que viveu na época de abertura forçada do Japão ao ocidente. Após um período de cerca de duzentos e cinquenta anos de reclusão nacional (Sakoku 鎖国 1603-1868), os artistas japoneses entravam em contacto, pela primeira vez em larga escala e em variedade, com a arte e pensamento ocidental. No caso de Shiki, foram as teorias do crítico de arte, pintor e filósofo John Ruskin que, de acordo com a introdução de Joaquim M. Palma (doravante JMP), mais impacto lhe causaram, sobretudo nos seus esforços argumentativos de renovação e habilitação do haiku enquanto forma de arte universal.
João N. S. Almeida
Continuing the project that Hans-Ulrich Gumbrecht started with In Praise of Athletic Beauty (2006) and benefiting from much that has been put forward in Production of Presence: What Meaning Cannot Convey (2004), Crowds (2021) intends to speculate analytically on a subject’s ontological status when immersed in a crowd. As expected, the book is mostly anchored on continental philosophy: his references are authors interested in the being-as-body such as Husserl and Heidegger, who form the basis for a focus on the bodily presence as opposed to the dimension of intellectual meaning. Gumbrecht’s reasoning in those previous works tries to gravitate towards the body, a culture of presence and, specifically in this one, the ontological differences that being immersed in a crowd and watching sports may bring out.
Lourenço Veiga
Sorry, Wrong Number é um filme baseado numa peça para rádio do mesmo nome. Ainda que este registo cinematográfico seja, num certo sentido, a representação visual da performance radiofónica (com vários elementos acrescentados que aumentam a complexidade da obra, como veremos), o elemento principal de ambos não deixa de ser o som, mais especificamente (e exclusivamente) o som que se ouve, em toda a sua limitação e promessa, numa conversa à distância. Não quero com isto dizer que o som no filme é tão importante como o som na peça de rádio; no filme, é a nível conceptual que ele nos interessa. Encaminha-nos para algo que não faz parte apenas dos «dados dos sentidos», pois estamos a falar também de memórias e expectativas, ou de ilusões e medos.
Teresa Líbano Monteiro
Eugénio Lisboa foi não só amigo pessoal do escritor José Régio como é, também, o seu maior e mais incansável crítico. José Régio – a obra e o homem constitui o ensaio mais longo que dedicou ao poeta de Vila do Conde e nele pretende, como explica na «Nota à 3.ª edição», «fazer a “soldadura” sobre o Homem e a Obra, sem fundamentalismos biografistas mas também sem preconceitos ferozmente antibiografistas» (p. 9). O ensaio foi publicado pela primeira vez em 1976, tendo sido de novo editado em 1986 e, mais de trinta anos depois, está novamente disponível nas livrarias graças à editora Opera Omnia. É necessário, aliás, deixar aqui uma nota de apreço a esta editora, que nestes últimos anos tem vindo a republicar volumes da obra de José Régio (e.g. Histórias de Mulheres, Biografia, Páginas de doutrina e crítica da Presença, a antologia de poemas Nunca vou por aí) e, neste caso, bibliografia crítica sobre o autor. A reedição destes livros – e, o que não é despiciendo, com um design simples e bonito – será um contributo para uma maior divulgação e leitura de José Régio pelo público geral português, algo de que beneficiarão, certamente, tanto o nome do escritor como os leitores.
Lauro Reis
Hojôki é o título de uma micronarrativa autobiográfica sobre um poeta japonês e a sua cabana. É um texto que discorre sobre os motivos por que Kamo No Chômei, o autor, decidiu afastar-se da vida urbana e construir, já na segunda metade da sua vida, uma cabana minúscula no meio de uma montanha, abdicando de todo o conforto material da vida na capital.
James Dias
Há algo de perverso em recomendar um poema a alguém. Recomendar algo a alguém parece inocente. Achamos que uma pessoa poderá gostar de algo de que nós também gostamos. Se gostámos de um poema, de um filme, ou de um restaurante, é natural que queiramos partilhá-lo com alguém de quem gostamos; queremos que essa pessoa também goste daquela coisa. O problema com isto é acharmos (e desejarmos) que a outra pessoa goste da coisa da mesma forma que nós gostamos, que repare no que nós reparámos. Há uma diferença entre apontar para algo e apontar para algo e explicar exactamente para onde estamos a apontar. Diferente ainda é achar que, por explicarmos exactamente para onde estamos a apontar, a pessoa consegue ver o que nós vemos.
Francisco Cambim
Numa entrevista recente, Geordie Greep, um dos membros da banda londrina black midi, faz um comentário a propósito da reacção ao primeiro álbum da banda, Schlagenheim, lançado em 2019, e deixa uma antecipação relativamente ao segundo, Cavalcade, lançado oficialmente a 28 de Maio de 2021. Greep revela na entrevista que, passado algum tempo, todos os membros da banda se aborreceram com o primeiro álbum. «So it was like: this time let’s make something that is actually good», nas palavras de Greep. Para aqueles de nós que, passados mais de dois anos, ainda não se tinham aborrecido com o álbum de estreia da banda, as palavras de Greep deixavam alguma curiosidade e expectativa. Se, por um lado, se imagina que os black midi sejam musicalmente capazes de fazer quase tudo o que lhes apetecer, por outro, surge uma pergunta, com potencial para se tornar frequente e que sugere a própria imprevisibilidade do percurso da banda: o que é que eles vão fazer a seguir? A resposta à pergunta tem, por agora, a forma de Cavalcade.
Susana Bastos Mateus
No princípio, reinava a escuridão. Podiam ser estas as palavras iniciais da ópera A Nave dos Diabos, levada ao palco do Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, nos dias 10 e 11 de Julho de 2021, pela Associação Setúbal Voz e pela Companhia de Ópera de Setúbal. No entanto, as primeiras palavras são «tenho fome!», um grito dilacerante que um dos membros do Coro Setúbal Voz lança na entrada da sala, junto à plateia.
Inês Morais
Being for Beauty begins with a few anecdotes involving aesthetic experts, ‘not all gentlemen, not all European, not all “highbrow”’ (p. 26). These set the tone of the book, which aims to be both progressive and alternative to highbrow philosophical aesthetics, occasionally relaxed and entertaining, while engaging mainly with classical, mainstream work in general philosophy. Breadth of interest and the project of covering literature from large neighbouring areas of philosophical discussion—to defend aesthetics—are immediately salient qualities of this book.
Miguel Andrade
É notável hoje, como o era na Idade Média, que uma ilha relativamente remota e escassamente povoada seja reconhecida internacionalmente pela vitalidade da sua poesia. A Islândia, de onde nos chega esta colectânea de poemas, pela mediação de Amadeu Baptista, possui uma ligação íntima e constante com a poesia, desde a sua colonização em c. 870 d.C. O verso pertence ao quotidiano dos islandeses e a sua tradição poética é vasta e prolífera. Nos termos do historiador dinamarquês Saxo Grammaticus (1160-1220), «A diligência dos homens da Islândia não deve ser envolta em silêncio». Pelos Nossos Corações passa a Linha de Fogo desvela-nos a poesia do mesmo povo, embora de diferente cronologia. Estes poemas foram originalmente publicados entre 1937 e 1991, pelas mãos de dezoito poetas (quatro dos quais mulheres). A selecção foca-se, em grande parte, num período de transição, da libertação da poesia islandesa dos seus moldes tradicionais, sacudindo-se da aderência estrita a poemas de estrutura regular, rimados e aliterados, e dos velhos e repetidos temas (uma poesia lírica, a dedicação à natureza e um ideário romântico, por vezes nacionalista e individualista). Nesta fatia do século XX, encontramos uma Islândia em mudança, abrindo-se ao mundo, e uma poesia acompanhando o seu passo, com os anos 40 como charneira desta articulação.
Tiago Ramos
Na protocolar cena de créditos iniciais, à medida que os artistas pertencentes à produção de Gaslight (1944), de George Cukor, são elencados, no plano de fundo conseguem-se distinguir as sombras de duas pessoas, sendo que uma aparenta estar a estrangular a outra. Assim sendo, o primeiro plano a que o espectador tem acesso, ainda antes de a ação começar a desenrolar-se, prenuncia o assassínio de Alice Alquist, uma cantora de ópera reconhecida mundialmente, que é encontrada morta na sua residência, na Praça Thornton, em Londres. De igual modo, o engenho de sombras estabelecido pelo plano inaugural figura um dos motivos estruturantes da intriga: a dependência ontológica. Paula Alquist (Ingrid Bergman), a sobrinha da falecida cantora de ópera, tal como uma sombra projetada sobre uma superfície, afirma-se enquanto desdobramento ontologicamente vazio que está dependente de uma entidade que lhe dá realidade: a tia assassinada. Paula é a sombra da tia, uma figura ela própria espectral, que nunca surge em cena, uma vez que os primeiros passos da intriga são dados na sequência da sua morte trágica.
Miguel Zenha
Rita Felski’s new book puts in place what The Limits of Critique had requested, that is, a less counterintuitive, secluded, and priggish way of addressing art. Since for Felski critique has led us to forget “why (…) works of art matter” (p.1), we must stress the diverse sorts of connections—attachments—between individuals, individuals and works of art, and hence ways of interpreting. In other words, Hooked is not about what art is but about what art can do. Accordingly, Felski offers “an aesthetic that is premised on relation rather than separation, on attachment rather than autonomy” (viii), which elects as target “an ethos of critical aloofness” (x). To that extent, attachment “is a matter not just of feeling (…) but of intellectual, ethical, or institutional ties” (idem).