Guilherme Berjano Valente
Há coletâneas de poesia e há livros de poesia. Enquanto o primeiro tipo se destaca pelo seu valor antológico, servindo de espaço de encontro a vários poemas de um só autor ou de vários, o segundo possui um cuidado edificado, no qual cada poema tem um papel instrumental na estética e na filosofia transmitida: alguns exemplos mais notáveis serão O Guardador de Rebanhos[1], de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) ou Fervor de Buenos Aires[2], de Jorge Luis Borges.
Teresa Líbano Monteiro
O roman à clef Ordens Menores, no qual José Régio figura sob o nome de Natan[1], pode ser lido como uma importante chave hermenêutica para outros dois textos de Agustina Bessa-Luís sobre o autor vilacondense: o artigo «Passagem sem ornamento» (Bessa-Luís, 1984) e o conjunto de cartas que a autora trocou com o seu reservado amigo (publicadas no pequeno volume Correspondência Agustina-Régio (1955-1968) [Bessa-Luís, 2014]). Com efeito, ganhamos muito, enquanto leitores, em ler o romance como uma tentativa de a autora de Fanny Owen desvendar a personalidade esquiva de José Régio, que tantas vezes se lhe ocultava nessa mesma correspondência. Na restante obra, o escritor d’A Velha Casa é igualmente enigmático: como afirma António Feijó, há uma constante vigilância por parte do autor para se resguardar do leitor[2], e esta autovigilância é sentida mesmo em livros tão escabrosos, pelo impudor sexual, como O Jogo da Cabra Cega. Opinião similar é a de Eugénio Lisboa no estudo José Régio ou a Confissão Relutante (Lisboa, 1988), no qual desenvolve o argumento de que os livros de José Régio vivem de uma vontade de confissão; esta raras vezes se concretiza[3], mas é justamente desse estado latente, simultaneamente desgastante e fértil, que vive a obra do autor d’As Encruzilhadas de Deus.
Pedro Franco
Susan Sontag reflectia em 2003, no pico da «guerra ao terror», que a aparente insensibilidade que resulta da exposição excessiva a imagens de miséria e violência esconde, afinal, uma enorme dose de raiva e frustração, a que não somos capazes de dar vazão.[i] Poderíamos dizer que é desta camada escondida que surge, nos antípodas do torpor e da anestesia, a hipocondria moral, um fenómeno característico da nossa época, a que não é alheia a consolidação da pequena burguesia ou, em termos porventura menos carregados de ideologia, das classes médias. E, por isso, não é estranho o teor psicanalítico desta ideia (a popularidade da psicanálise é, também ela, um fenómeno burguês ou de classe média). É, portanto, neste espectro social que se situa a disquisição dos filósofos Natalia Carrillo (filósofa da ciência da Universidade de Viena) e Pau Luque (filósofo do direito da Universidade Nacional Autónoma do México), no ensaio que acabam de publicar pela Anagrama.
James Dias
Em 2003, Laurinda Bom publicou um livro que, até há pouco tempo, era o que mais se aproximava a um livro de entrevistas dadas por Alexandre O’Neill, intitulado Alexandre O’Neill. Passo Tudo pela Refinadora. Para além de duas entrevistas concedidas a Adelino Gomes e Joaquim Furtado em 1983, Bom organizou algumas das respostas de O’Neill por temas, como «Poesia»; «Surrealismo»; «“Parentela” poética»; «Publicidade»; «Sociedade e consumo»; «Crítica»; «Vária». O maior problema com esta organização é que se parece mais com um conjunto de ditos de O’Neill, do que com uma reunião de conversas.
Maria Madalena Quintela
O ouvido mais atento terá notado a falta cada vez mais gritante de um certo piar pelas ruas lisboetas: o dos pardais. Estes pássaros, antes considerados comuns, vão-se tornando uma raridade cada vez maior. A diminuição da população de pardais é aliás um problema que afecta várias partes do mundo, Lisboa não é caso único, e tem chamado a atenção da comunidade científica, levantando várias questões sobre o porquê do desaparecimento dos pardais, e possíveis soluções. O novo livro de Adília Lopes, Pardais, publicado em Julho de 2022, ambiciona imitar o piar e a fisionomia destes pássaros: «Gostava que os meus poemas fossem pardos, modestos, pequenos, lisboetas como os pardais e que tivessem o som do piar dos pardais» (p. 36).
Tiago Clariano
Art History versus Aesthetics tem por proposta contemplar as disciplinas da História da Arte e da Estética como duas ilhas que se avistam uma da outra e tentar analisar as formas de comércio que mantêm entre si. Este volume faz parte da colecção The Art Seminar. Cada livro tem a estrutura de um livro de actas de um congresso e começa com «Starting Points», depois segue-se a transcrição de uma mesa redonda, com a subsequente transcrição das folhas de sala dos participantes e dos espectadores e, no fim, alguns ensaios com tom de «Afterwords». Por causa dos seus intuitos conciliatórios, James Elkins esforça-se por reconhecer que existem pontos de contacto entre as disciplinas: que a sensibilidade estudada pela Estética está contaminada por conhecimento histórico e que as antologias resultantes de trabalhos em História da Arte são fruto de decisões baseadas em juízos estéticos. No fundo, se tivéssemos um registo dos movimentos comerciais entre as ilhas na abordagem de uma obra de arte, não se saberia de que ilha partiriam, nem a qual se dirigiriam.
James Dias
O primeiro livro de Jarvis Cocker é um memoir num sentido diferente do normal. Parte dos objectos que ele foi guardando num sótão durante 20 anos para memórias suscitadas pelos mesmos. Para mostrar estes objectos, Cocker faz uso de uma espécie de jogo com o leitor (e no qual a maioria das pessoas já teve de participar a dada altura da sua vida): decidir se vai guardar um objecto ou deitá-lo fora: «Até podemos fazer disto um jogo – chamemos-lhe “Guardar ou deitar fora”.»
Camila Lobo
«There are plots against people, aren’t there?»
Estamos no ano de 1968. Na América do Norte, e um pouco por todo o mundo, o movimento feminista ganha força. A cidade de Nova Iorque, em particular, é palco de protestos feministas sem precedentes. Se as New York Radical Women tomam conta das ruas em protesto contra noções tradicionais de feminilidade, articulando pela primeira vez o slogan «Sisterhood is Powerful», a National Organization of Women protesta contra a criminalização do aborto: «Nobody should legislate my rights to my body», lê-se no cartaz transportado por Kate Millet.
Inês Morais
The Oxford Handbook of the Philosophy of Consciousness is an excellent, very comprehensive survey and discussion of recent work in the philosophy of consciousness, with contributions from philosophers and neuroscientists, in the major aspects of an area with ramifications at least into epistemology, metaphysics, ethics, and aesthetics. I strongly recommend it.
Telmo Rodrigues
Numa ficção de cariz autobiográfico recente, A Lição do Sonâmbulo (2020), Frederico Pedreira parecia interessado nas consequências vinculativas de actos não intencionais (ou pelo menos na dificuldade de contar uma história pessoal que vacila entre a educação formal e a relevância constitutiva de actos aparentemente insignificantes). A dificuldade nesse Bildungsroman era articular a dissonância entre a relevância efectiva do trabalho intelectual e o peso que tem qualquer acção desligada desse esforço: jogar à bola num quintal é mais relevante para a formação de carácter do que as horas perdidas a ler Pessoa; mais difícil ainda é articular a relevância entre ler Pessoa sem compromisso e a inutilidade da mesma acção inserida num contexto académico:
Não sei se terá sido sonho meu, dado o prazer que sempre senti ao reler as páginas da pobre edição d’O Livro do Desassossego que o meu avô fizera questão de me oferecer, prazer esse que depois da odiosa obrigação escolar se fora tornando independente e crescendo ao longo dos anos de leitura canina (…) (A Lição do Sonâmbulo, p. 32).
Duarte Bénard da Costa
This volume on signatures of Bloomsbury’s collection Object Lessons springs from the research that Hunter Dukes, lecturer of English Literature at Tampere University, Finland, weaved during his years as a research fellow at Peterhouse, University of Cambridge. Something of cinematic mixes with something of academic in his journey throughout signatures. Short narratives merge with profoundly intellectual and cultural analyses which approach varying subjects, from the Lascaux caves to Zadie Smith, from John Donne and Oscar Wilde to U.S. President J. F. Kennedy and Orson Welles.
James Dias
Filipe Marques Fernandes
Publicado simultaneamente pela Harvard University Press e pela Faber and Faber, o livro de Grafton mergulha num campo de interesse historiográfico escassamente povoado e representa uma primeira tentativa de ensaio global sobre a origem da nota de rodapé, pretendendo colmatar as lacunas deixadas pelos estudos esparsos que compunham a bibliografia disponível. Desengane-se, contudo, quem pretenda encontrar neste tratado uma história geral da referenciação infrapaginal. A obra, que no presente ano cumpre 25 anos da publicação do texto original, contou com diferentes traduções, cujos títulos restringiram significativamente a abrangência do objecto, incrementando a sua especificidade. A organização da obra denuncia a intenção de traçar uma árvore genealógica da prática de anotação em rodapé. Grafton não procura oferecer um sistema fechado sobre a sua origem, mas antes conduzir o leitor num caminho inversamente cronológico através de uma estratificação temporal transposta para uma narrativa antológica, em que cada anedota conta um passo substancial no devir da nota de rodapé no campo da história.
Miguel Zenha
In Peter Salmon’s book, we are before a defense of Derrida as a philosopher since it
aims to set out the intellectual development of Jacques Derrida (…) argue for its importance in the history of philosophy. It will argue that Derrida is one of the great philosophers of this or any age; that his thinking is a crucial component of any future philosophy; that his thinking is immediately—always already—applicable to the world as we find it; and that this application has political heft. (p. 4)
Francisco Pina
João Garcia Miguel, encenador, performer e artista português, tornou-se ilustre pelas estratégias invulgares a que recorre para trazer as suas criações ao mundo do teatro. A forma como reorganizou e reformou textos clássicos concedeu-lhe um estilo artístico altamente característico que mostra genialidade e justifica a internacionalização do seu trabalho. É neste contexto que Garcia Miguel toma conta do Teatro Ibérico com um novo olhar sobre a adaptação de King Lear que lhe deu fama em 2006. «Entre 2006 e 2009 pegámos pela primeira vez num texto de William Shakespeare: King Lear. E dando-lhe um tom de arte popular e fazendo do rei um fingido cidadão e um clown experimental reconstruímos com dois actores as vinte e muitas personagens da peça original», lembrou o encenador na folha de sala.
Pedro Beirão
Dos Benefícios dum Vendido no Reino dos Bonifácios é o primeiro álbum da enigmática Banda do Casaco, lançado em 1975 e reeditado em 2022. Tal como a própria banda, o álbum surge de um mundo em ebulição, marcado por um experimentalismo transversal às mais variadas áreas da vida: na procura de novos sistemas de organização política, baseados na autodeterminação dos povos em oposição ao imperialismo, na procura de novos sistemas de organização social por parte de sectores da sociedade historicamente discriminados, na procura de novos sistemas de organização artística, ou até na procura da transposição das próprias fronteiras planetárias. Foi precisamente no Portugal em pleno período revolucionário que a Banda do Casaco nos propôs um destemido projecto musical com uma tão mais ousada premissa narrativa: e se Fausto, o mefistofélico, tivesse vivido o PREC?
Amândio Reis
A obra de estreia de Manuel Bivar aparece como um objecto não identificado nos céus da ficção portuguesa contemporânea. Ainda assim, ou por isso mesmo, ela leva o seu autor a partilhar pelo menos uma coisa com alguns outros, como Ana Teresa Pereira, por exemplo, que é certa maneira de estar absolutamente só. Mas esta solidão não será uma arrogância, ainda que tenha lugar «por entre a gente» e na ronda dos certames literários ocasionais. Ela decorre menos de uma escolha do que de uma inevitabilidade, ou um destino. É que Manuel Bivar e Ana Teresa Pereira cultivam o seu ofício com demasiada verdade em relação a si mesmos, o que significa que não sabem estar ao serviço de outrem nem do gosto da época, e com demasiada humildade em relação ao lugar fragilíssimo da sua obra no mundo, o que faz com que não tenham jeito para conversar sobre ela, nem sejam interessantes nem úteis nos círculos sociais da literatura e da cultura.
Miguel Zenha
Letters to Camondo continues the central premise of The Hare with Amber Eyes (2010): to talk about people and history as from things or objects. In The Hare with Amber Eyes, we have a collection, mainly assembled in the mid-19th century, of more than two hundred netsukes, which strolled around Paris, Vienna, Tokyo and London, while in Letters to Camondo we start with Moïse de Camondo’s house and decorative arts collection as leading figures. Still, the common ground between both books is especially noticeable if we find Letters to Camondo trying to answer the question from the final pages of The Hare with Amber Eyes, “why keep things, why archive intimacies?”.
Teresa Esteves da Fonseca
«Prodígio» foi a palavra que começou por ser usada quando Declan McKenna, com apenas 16 anos, apareceu no cenário musical britânico. Agora, com 22, parece já não ser tão adequado, não porque tenha perdido o brilhantismo musical que o distingue de tantos outros, mas porque quando se chega a um certo patamar deixa-se de ser uma promessa, e passa-se a ser um artista consistente, porém orgânico e em crescimento constante. McKenna já deixou de ser uma promessa. É agora um músico de provas dadas: dois álbuns lançados, concertos pelo mundo fora, e cerca de três milhões de ouvintes mensais no Spotify.
Tiago Ramos
When my father passed, I wanted nothing more than my mother’s happiness. For what kind of man would I be if I did not help my mother? If I did not save her?
A epígrafe corresponde à frase que serve de preâmbulo à mais recente longa-metragem de Jane Campion, The Power of the Dog (2021). A frase é enunciada, por meio da voz-sobreposta, ainda no decorrer da sequência de créditos inicial. A figura responsável pelo enunciado é Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee), um jovem abúlico que vive com a sua mãe num povoado isolado nas planícies de Montana, em 1925. O facto de ser Peter quem tem o controle da voz-sobreposta é um dado relevante, na medida em que sinaliza, antes de a acção começar, qual é a personagem que tem poder sobre o discurso fílmico. Desta forma, a narração preambular cumpre vários propósitos. Por um lado, estabelece Peter na qualidade de narrador, o que lhe confere um estatuto de autoridade no contexto da economia narrativa. Por outro, delineia, de forma lacónica, as motivações do herói da trama – isto é, proteger a mãe e cumprir-se enquanto homem.
Duarte Bénard da Costa
The title of this academic work renders its content clear. An augmented rendering in French of Cynthia Gamble’s English published works between 2000 and 2016, Voix entrelacées de Proust et de Ruskin (2021) is mainly in line with her previous work on John Ruskin and Marcel Proust, Proust as Interpreter of Ruskin: The Seven Lamps of Translation (2002). Here, Gamble presents us with a thorough analysis of the interconnections between John Ruskin and Marcel Proust, a subject on which she has proven to be an authority. The interweaving relations of both authors exist in several aspects of their life and of their work, especially Proust’s, who, according to Gamble, is the ‘spiritual heir of Ruskin’ (2021: 10). This book deals with questions that pervade some of Gamble’s academic work, such as the authorship of Proust’s translations of Ruskin and the influences Ruskin had on Proust.