Rita Faria
A exposição Troy: Myth and Reality elucida-nos sobre seu objetivo no primeiro painel exibido à entrada: trata-se de demonstrar que a história da cidade de Tróia e da sua guerra contra os Gregos está tão viva para nós, contemporâneos do século XXI, como o estaria na Grécia Antiga, época distante em que os humanos viviam próximos dos seus deuses. Compreende-se, por isso, que as primeiras peças expostas sejam de artistas contemporâneos — uma instalação de Anthony Caro, The Trojan War, que pretende aproximar a guerra da Bósnia à de Tróia, e uma tela monumental de Cy Twombly sobre «a vingança de Aquiles».
João N.S. Almeida
Este filme parece-me ser absolutamente único na perspectiva que apresenta sobre a esquizofrenia. Retrata o que é a experiência de vida do esquizofrénico, quase sempre na primeira pessoa, e não envolve grandes sacrifícios que o puxem nem para a correspondência com a visão exterior do espectador lúcido, nem para a visão estética e autoral do realizador sobre essa condição psíquica, como é costume acontecer em filmes que abordam este tema.
Lauro Reis
O filme mais recente de Bong Joon-Ho procura transportar a dinâmica entre parasita e hospedeiro para um contexto humano. Uma família desempregada de quatro (pai, mãe, filho, filha), sobrevivendo numa cave, roubando internet de cafés e dobrando caixas de pizza, depara-se com a oportunidade de anexar-se à vida de outra família, explorando e consumindo os recursos da família hospedeira.
João N.S. Almeida
Já é sabido que Joker, um projecto do realizador Todd Phillips e de Joaquin Phoenix, entre outros, não é o típico comic book movie. Será mais correcto descrever o filme como pertencente ao sub-género dramático de filmes sobre psicopatas, como Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976) e Silence Of The Lambs (Jonathan Demme, 1991), ambos com Jodie Foster — sendo que o primeiro inspirou o atentado contra o presidente Ronald Reagan, em 1981 — assim como Psycho (Alfred Hitchcock, 1960), A Clockwork Orange (Stanley Kubrick, 1974), Blue Velvet (David Lynch, 1986), M (Fritz Lang, 1931), entre outros.
António Marques Pereira
Por esta altura já todos conhecemos os «tiques» de Quentin Tarantino e, de modo mais ou menos condescendente, aceitamo-los sem fazer grande caso. Sabemos do seu gosto auto-indulgente pelas referências e pelo pastiche (que por vezes chega ao ponto de nos dar a sensação de que ele está a fazer o equivalente a mostrar-nos a sua página do Mubi), e sabemos da imaturidade do seu sentido de humor (nem The Hateful Eight (2015), um dos filmes mais maduros do seu repertório, escapou a momentos juvenis como o do infame «warm black dingus»); mas também sabemos da qualidade inquestionável de um realizador que produz clássicos com regularidade e que a influência desses vícios particulares na sua arte nunca é problemática ao ponto de prejudicar o produto final (poder-se-ia mesmo dizer que, pelo contrário, é um dos ingredientes do seu estilo tão característico, precisamente o que estimamos nele).
Telmo Rodrigues
No contexto contemporâneo, uma enciclopédia ou dicionário novos representam acima de tudo uma lista bibliográfica actualizada sobre determinada área de interesse. Essa visão empobrecida ameaça qualquer empresa como a proposta por Comportamento e Saúde Mental: Dicionário Enciclopédico, que, como outros projectos similares, preserva a ambição de ser de alguma forma enriquecedor. A facilidade no acesso à informação fez com que se perdesse «a segurança da informação, pois as fontes se tornaram demasiadamente voláteis» (p. 506) e, num movimento contra-intuitivo, reavivou a necessidade de manuais cientificamente fidedignos, pelo que o sentido de oportunidade para esta edição é perfeito.
Inês Morais
Plato famously set the challenge, in the Republic, for poets and lovers of poetry to defend poetry and its contribution for a well-governed society, if poetry is to “return from exile”:
But nevertheless let it be declared that, if the mimetic and dulcet poetry can show any reason for her existence in a well-governed state, we would gladly admit her, since we ourselves are very conscious of her spell. But all the same it would be impious to betray what we believe to be the truth. Is not that so, friend? Do not you yourself feel her magic and especially when Homer is her interpreter?
Telmo Rodrigues
For some reason, Patty Schemel’s autobiography has let me down. Schemel’s narrative holds its pace along the way (although lackluster towards the end), it is packed with good descriptions, it has many emotional turnabouts, and it details private moments of some of the most important stars of the last decades without seeming gossipy or in any way deceitful — so there seems to be no particular reason for my feeling. If the disappointment is not located in the writing, I must account for it in some other way. To do so, I would like to explain the two moments in the book where I would say Schemel’s adopted style seems to flutter: the description of the relationship with Kurt Cobain and the final chapters concerning her life after her last rehab.
João N. S. Almeida
O reconhecimento de John Zorn como compositor incontornável da contemporaneidade, tanto no meio do jazz como nos círculos da música erudita, é um fenómeno recente, que dura desde há cerca de 7 ou 8 anos. O seu início coincide aproximadamente com a atribuição da MacArthur Fellowship Grant ao compositor, em 2006, e o William Schuman Award, em 2007. Nas celebrações do seu 60º aniversário, que tiveram lugar em 2013, peças da sua autoria foram acolhidas pelo MET, Lincoln Center, e pelo Guggenheim. Nos anos que se seguiram, vários ciclos temáticos foram-lhe dedicados por instituições de renome, aos quais se junta agora o ciclo Jazz em Agosto, da Gulbenkian. Ao longo do tempo, a coerência autoral do compositor tem-se mantido, mas a sua produção musical de hoje não é a mesma de há cinco, dez ou vinte anos atrás. Poder-se-ia chamar a este ponto da sua carreira uma maturação, não querendo com isso significar que Zorn se tenha estabelecido numa norma da música erudita contemporânea depois de se aventurar em terrenos do experimentalismo e da improvisação, mas sim que conseguiu conjugar em formas mais sólidas as influências díspares que sempre estiveram no seu pensamento.
Tatiana Faia
Há dois museus Benaki em Atenas, o principal num edifício que me lembra um pouco o centro cultural de Belém, que aloja colecções de Arte Moderna e fica na Rua do Pireu, e um outro menor num edifício neoclássico em Koumpari, a avenida que desemboca em Syntagma e é, de um modo geral, dedicado a arte ligada à história das origens do estado grego na idade moderna. Não há muito para ver neste Benaki mais pequeno, e, indo lá uma vez, é daqueles lugares a que talvez não se pense em regressar. Mas está lá um manuscrito de Cavafy e as pistolas de Lord Byron e por isso de vez em quando dá-me uma nostalgia e refaço os passos desta idiossincrática peregrinação.
Joana Graça
Tal como na poesia, este livro divide a nossa atenção entre o conteúdo e a forma. John Berger constrói um romance com linhas simples, elípticas e quase talismânicas. Apesar da aparente narrativa simples — em que as personagens surgem elipticamente para nos contar as suas histórias —, o romance possui uma atmosfera particular e densa, obrigando-nos a parar e a desfrutar deste stimmung particular de Para o Casamento. A história é sobre Ninon e Gino, um jovem casal de apaixonados que irão casar, apesar de Ninon ter sido diagnosticada com uma doença terminal. Ao invés de trágica, a história rejuvenesce o espírito. Trata-se de um romance sobre a transitoriedade da vida, sobre como coisas terríveis acontecem a pessoas inocentes, mas, sobretudo, como tudo por momentos pode ser eclipsado pelo mais singelo dos sentimentos: a ternura.
Joana Meirim
Nove fabulo, o mea vox / De novo falo, a meia voz, título do livro de Alberto Pimenta editado em 2016, sugere desde logo que alguém, que esteve em silêncio durante algum tempo, volta agora a falar, e que essa fala é a meia voz, uma voz menos audível, que parece ter perdido força. Significa isto que o poeta tem menos para dizer? Não, significa antes, como tentarei mostrar ao longo desta recensão, que o registo menos audível, mais melancólico e resignado se adequa aos tópicos que Alberto Pimenta elege como linhas de força deste seu livro de poemas: a passagem do tempo, o envelhecimento e a inevitabilidade da morte.
Pedro Franco
Aristóteles, São Tomás de Aquino e Marx. Não os costumamos ver juntos à mesa, mas são estes os autores de referência de Alasdair MacIntyre, uma das figuras mais cativantes do actual panorama filosófico. MacIntyre faz parte de uma corrente heterodoxa da ética (moral philosophy) que a libertou de uma subjugação à filosofia da linguagem, fazendo-a florescer de novo, o que constitui, desde logo, um motivo de interesse para o ler. Tem sido também invariavelmente uma voz de minorias: escocês em Inglaterra e nos E.U.A., marxista no mundo capitalista e depois católico num mundo académico secular.
Telmo Rodrigues
There’s a Riot Going On, último disco dos Yo La Tengo, terá em grande medida passado despercebido. O facto podia ser ponto de ataque de várias diatribes sobre a indústria musical e a maneira como se consome música hoje em dia, mas isso obrigaria a que se deixasse escapar uma conformidade óbvia entre forma e conteúdo: o disco é tão discreto que a sua existência recatada pode ser justamente apelidada de justiça poética.
João N.S. Almeida
Grande parte da carreira cinematográfica de Charlton Heston assemelha-se a uma biografia ideológica, onde os filmes e a expressão da pessoa pública do actor acompanham a constituição da sua personalidade privada e das suas ideias morais e políticas. Nessa progressão, podemos encontrar uma fase de referência, na passagem da década de 60 para a década de 70, quando Heston participa em Planet of the Apes (1968), The Omega Man (1971), e Soylent Green (1973), uma trilogia não premeditada de dramas de ficção científica com uma temática conservadora, republicana, e individualista.
Telmo Rodrigues
Na sequência de uma crítica aos jogadores da equipa de futebol, o presidente do Sporting Clube de Portugal, Bruno de Carvalho, viu-se envolvido num conjunto de situações peculiares que incluíram uma resposta oficial por parte dos jogadores e uma contra-resposta em que o presidente garantia que as pessoas não o percebem e que, por isso, todos os jogadores seriam castigados. Duramente criticado por muitos sócios, o Presidente do Sporting afastou-se dos meios de divulgação noticiosa (oficiais e oficiosos). Depois de alguns dias de silêncio forçado, ansioso por responder ao que apelidara de ingratidão, dirigiu-se aos críticos num discurso no Núcleo do Sporting de Soure onde, entre outras coisas filosoficamente interessantes, afirmou: «Se para vocês basta existir e respirar, está bom.»
Jorge Uribe
Quando La frantumaglia, traduzido em Portugal pela Relógio D’Água com o título Escombros, foi publicado pela primeira vez, Elena Ferrante era um nome de escritora conhecido sobretudo em Itália. Corria o ano de 2003 e tinha dois romances publicados, ambos acerca de mulheres nascidas em Nápoles que enfrentavam experiências traumáticas — o suicídio da mãe e o divórcio, em cada caso. Essas experiências desafiam a autoperceção destas mulheres e submetem-nas a laboriosas viagens de reconhecimento e reconstrução. O estilo de Ferrante é inconfundível: ligeiro e rápido no fluxo narrativo; incisivo e autocomplacente no aprofundamento de emoções e imagens perturbadoras. Trata-se de uma mistura incomum de objetivismo irónico e intrusão melodramática, que tem cativado leitores no mundo inteiro.
Nuno Amado
Um dos temas fortes de Three Billboards outside Ebbing, Missouri, o mais recente filme de Martin McDonagh, é o preconceito. O filme não é, contudo, sobre um preconceito particular. Não é stricto sensu sobre racismo, homofobia, misoginia ou demais manifestações de ódio e intolerância, mas sobre aquilo que lhes é comum. O que interessa mostrar não é uma das várias facetas da América, mas a América. Dito assim, parece pretensioso. Até porque, evidentemente, os problemas de um lugarejo no Missouri não são iguais aos problemas de outros lugarejos nem iguais aos problemas de uma grande metrópole. Não obstante, é perfeitamente possível que problemas diferentes procedam de causas comuns. A pequena cidade de Ebbing, estrategicamente situada no coração da América (foi no Missouri, em Ferguson, que em Agosto de 2014 o jovem Michael Brown foi baleado por um agente da polícia e morreu, e foi esse incidente que deu origem ao movimento «Black Lives Matter»), é por sinédoque a própria América.
Tatiana Faia
A escala da obra de Giorgio Bassani, autor de Ferrara, nascido em Bolonha em 1916, é bastante singular na história do romance europeu do século XX. Bassani é verdadeiramente o autor de uma obra monumental escrita numa escala menor: novelas breves sobre personagens aparentemente insignificantes, obras primas de vinte páginas, contos imortais sobre gente que nunca sai de casa ou sobre uma discussão entre esposos, ao conduzir um carro pela província, sobre que estrada tomar na viagem de regresso a Roma. É difícil explicar o que seja ao certo o triunfo deste escritor, mas algo na sua ficção é vital não só como documento do mundo em que vivemos, mas na representação de tensões mínimas, equilíbrios fugazes entre as pessoas, por regra ocorridos sob um contexto histórico opressivo, que têm o poder de moldar as suas vidas.
Gonçalo Gomes
Serão poucos os pontos altos da carreira de Fassbinder que apresentem um carácter tão incontornável quanto Die Ehe Der Maria Braun (O Casamento de Maria Braun), filmado entre Janeiro e Março de 1978 e exibido pela primeira vez, de forma não oficial, no Festival de Cannes nesse mesmo ano (onde estava também em competição Despair), numa estreia anterior à do Festival de Berlim, em Fevereiro de 1979. Maria Braun tornou-se no filme mais triunfante de Fassbinder, tanto crítica como comercialmente. Contabilizou milhões de Deutschmarks na bilheteira alemã, valores bastante altos nos Estados Unidos, e esteve durante um ano em exibição num cinema prestigiado em Paris. Além de tornar Fassbinder numa estrela internacional, Maria Braun tornou-se um dos filmes chave do Novo Cinema Alemão, no centro do círculo que se preocupava em dominar o passado nazi, para onde contribuíam, entre muitos outros, Margarethe Von Trotta, Jutta Brückner, Helma Sanders-Brahms, Volker Schlöndorff, Hans-Jürgen Syberberg e Wim Wenders.