215. João Gonzalez, Ice Merchants

215. João Gonzalez, Ice Merchants

Guilherme Berjano Valente

Ice Merchants (2022), de João Gonzalez, destaca o carácter confortável e seguro que nasce das nossas rotinas e dos nossos hábitos. Neste filme, um pai e um filho vivem numa montanha envolta em gelo, numa casa que se segura a uma das suas encostas através de cordas. Como o nome do filme indica, são vendedores de gelo: tendo em conta o frio do local em que se encontram, congelam água e partem-na em pedacinhos para a vender. Ao partirem o gelo, recolhendo-o para venda, saltam com um para-quedas de modo a chegarem à aldeia mais próxima. Quando vendem tudo, recolhem-se para casa, subindo a encosta com um elevador manual – uma mota estagnada que, ao ser acelerada, os puxa para cima. Todos os dias, quando saltam, os seus gorros voam-lhes da cabeça, acabando por desaparecer na imensidão do ar. Percebemos que existe um grau de conforto nesta rotina tanto por repetirem-na, como por não temerem aquilo que os rodeia: uma grande queda e uma encosta de montanha. Isto torna-se ainda mais claro com a criança a andar de baloiço sobre o vazio, durante grande parte do dia, mostrando que a queda e o perigo não fazem parte da sua conceção de andar de baloiço sobre o abismo. Desta repetição quotidiana, nasce um sentimento de segurança e de conforto nas personagens, tornando o espaço à sua volta, aparentemente perigoso, num espaço sem perigos para os que o habitam.

214. Primeiro dia do festival Música Viva 2023 (05/05/2023)

214. Primeiro dia do festival Música Viva 2023 (05/05/2023)

Lourenço M. Veiga

No primeiro dia da 29ª edição do festival Música Viva, que decorreu no O’culto da Ajuda, foram tocados seis concertos. O festival tem como grande objectivo a divulgação de música erudita contemporânea, principalmente composta em Portugal. Com efeito, os concertos foram todos interpretações (pela Sond’ar-te Electric Ensemble) de composições de artistas portugueses. Duas dessas composições tiveram a sua estreia absoluta neste dia.

213. Benjamin J. B. Lipscomb, The Women Are Up to Something + Clare Mac Cumhaill and Rachael Wiseman, Metaphysical Animals

213. Benjamin J. B. Lipscomb, The Women Are Up to Something + Clare Mac Cumhaill and Rachael Wiseman, Metaphysical Animals

Joana Corrêa Monteiro

Controversies around the work, nature and purposes of universities have been around for some centuries, and even if settings, contestants and pretexts often change, the main ideas and opinions put forward are usually variations of the same set of basic claims, arguments and questions. The last decades are no exception and, from time to time, either because some scandal makes the headlines, or because more, or less, funding is allocated to, or cut from, some specific knowledge field or institution, or for countless other circumstantial reasons, universities and those working in them have had to explain their views on what they are, what they do, and why that which they do is worth doing. Even if, as has been noted, the clear majority of those engaging in these discussions has attended universities, usually good ones, and it would make sense to expect they are in the best possible position to know what the essence and purpose of a university is, the truth is this does not seem to be a settled matter.

212. Conceição Evaristo, Insubmissas lágrimas de mulheres

212. Conceição Evaristo, Insubmissas lágrimas de mulheres

Madalena Simões Leitão

Muitos foram os movimentos que trataram de contestar a ideia da mulher frágil e reprimida, limitada ao espaço da sua casa. Mas esta é a ideia da mulher branca, de uma classe específica. De parte, são colocadas as mulheres negras, indígenas, asiáticas, africanas, mulheres menosprezadas ao longo da narrativa europeia, «consideradas animais no sentido de seres “sem gênero”, marcadas sexualmente como fêmeas, mas sem as características da feminilidade.» (Lugones, 74) A luta contra este desprezo e abandono será então feita através de uma ruptura com os ideais de um feminismo hegemónico e do crescimento do feminismo decolonial.

211. Jonathan Lear, Imagining the End: Mourning and Ethical Life

211. Jonathan Lear, Imagining the End: Mourning and Ethical Life

Pedro Franco

In a section of an episode of the second season of The White Lotus (episode 6: “Abductions”), a young lad from Essex and a Californian au pair of sorts find themselves sitting idly at a dock in sunny Sicily, drinking beer and eating ice cream. They are having a meaningful, yet unusual discussion given the superficial relationship they entertain: Portia, the Californian girl, is wondering whether her friend Jack has any “goals”, to which he responds with perplexity: what does she mean by that? Portia’s blurry conception of a life goal seems rather unsatisfactory: “Be satisfied. That’d be nice.” Her desire to be one level up is contrasted by Jack’s one-day-at-a-time kind of attitude. Jack’s carelessness is (perhaps artificially) grounded on the impossibility of controlling the future, whether one will continue to live tomorrow or not, and then the debate shifts to a fundamental disagreement about the state of the world: while Portia thinks that the world is a “fucked up place”, Jack à-la-Pangloss thinks we live in the best one possible. After all, humans live in the greatest planet in the universe, and it is a miracle that we have survived centuries of mutual destruction, he says.

210. Robert Musil, As Perturbações do Pupilo Törless

210. Robert Musil, As Perturbações do Pupilo Törless

Teresa Líbano Monteiro

Törless, protagonista de As perturbações do pupilo Törless (1906), de Robert Musil, levou muito a sério a célebre admoestação do templo de Apolo, em Delfos – «conhece-te a ti mesmo». A narrativa tem, contudo, lugar no prestigiado internato de W., localizado numa zona longínqua do império austro-húngaro, milénios decorridos desde a citada injunção délfica. É neste microcosmo que o jovem pupilo procurou conhecer as zonas mais insondáveis de si, não olhando a meios para atingir este fim. Assim, ainda que nos seja apresentado como um rapaz sensível, Törless tem um papel não despiciendo na intriga principal do livro, o martírio de Basini.

209. Ricardo Gil Soeiro, Pirilampos

209. Ricardo Gil Soeiro, Pirilampos

Guilherme Berjano Valente

Há coletâneas de poesia e há livros de poesia. Enquanto o primeiro tipo se destaca pelo seu valor antológico, servindo de espaço de encontro a vários poemas de um só autor ou de vários, o segundo possui um cuidado edificado, no qual cada poema tem um papel instrumental na estética e na filosofia transmitida: alguns exemplos mais notáveis serão O Guardador de Rebanhos[1], de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) ou Fervor de Buenos Aires[2], de Jorge Luis Borges.

208. Agustina Bessa-Luís, Ordens Menores

208. Agustina Bessa-Luís, Ordens Menores

Teresa Líbano Monteiro

O roman à clef Ordens Menores, no qual José Régio figura sob o nome de Natan[1], pode ser lido como uma importante chave hermenêutica para outros dois textos de Agustina Bessa-Luís sobre o autor vilacondense: o artigo «Passagem sem ornamento» (Bessa-Luís, 1984) e o conjunto de cartas que a autora trocou com o seu reservado amigo (publicadas no pequeno volume Correspondência Agustina-Régio (1955-1968) [Bessa-Luís, 2014]). Com efeito, ganhamos muito, enquanto leitores, em ler o romance como uma tentativa de a autora de Fanny Owen desvendar a personalidade esquiva de José Régio, que tantas vezes se lhe ocultava nessa mesma correspondência. Na restante obra, o escritor d’A Velha Casa é igualmente enigmático: como afirma António Feijó, há uma constante vigilância por parte do autor para se resguardar do leitor[2], e esta autovigilância é sentida mesmo em livros tão escabrosos, pelo impudor sexual, como O Jogo da Cabra Cega. Opinião similar é a de Eugénio Lisboa no estudo José Régio ou a Confissão Relutante (Lisboa, 1988), no qual desenvolve o argumento de que os livros de José Régio vivem de uma vontade de confissão; esta raras vezes se concretiza[3], mas é justamente desse estado latente, simultaneamente desgastante e fértil, que vive a obra do autor d’As Encruzilhadas de Deus.

207. Natalia Carrillo & Pau Luque, Hipocondría Moral

207. Natalia Carrillo & Pau Luque, Hipocondría Moral

Pedro Franco

Susan Sontag reflectia em 2003, no pico da «guerra ao terror», que a aparente insensibilidade que resulta da exposição excessiva a imagens de miséria e violência esconde, afinal, uma enorme dose de raiva e frustração, a que não somos capazes de dar vazão.[i] Poderíamos dizer que é desta camada escondida que surge, nos antípodas do torpor e da anestesia, a hipocondria moral, um fenómeno característico da nossa época, a que não é alheia a consolidação da pequena burguesia ou, em termos porventura menos carregados de ideologia, das classes médias. E, por isso, não é estranho o teor psicanalítico desta ideia (a popularidade da psicanálise é, também ela, um fenómeno burguês ou de classe média). É, portanto, neste espectro social que se situa a disquisição dos filósofos Natalia Carrillo (filósofa da ciência da Universidade de Viena) e Pau Luque (filósofo do direito da Universidade Nacional Autónoma do México), no ensaio que acabam de publicar pela Anagrama.

206. Joana Meirim (ed., org. e intro.), «Diz-lhe Que Estás Ocupado»: Conversas com Alexandre O’Neill

206. Joana Meirim (ed., org. e intro.), «Diz-lhe Que Estás Ocupado»: Conversas com Alexandre O’Neill

James Dias

Em 2003, Laurinda Bom publicou um livro que, até há pouco tempo, era o que mais se aproximava a um livro de entrevistas dadas por Alexandre O’Neill, intitulado Alexandre O’Neill. Passo Tudo pela Refinadora. Para além de duas entrevistas concedidas a Adelino Gomes e Joaquim Furtado em 1983, Bom organizou algumas das respostas de O’Neill por temas, como «Poesia»; «Surrealismo»; «“Parentela” poética»; «Publicidade»; «Sociedade e consumo»; «Crítica»; «Vária». O maior problema com esta organização é que se parece mais com um conjunto de ditos de O’Neill, do que com uma reunião de conversas.

205. Adília Lopes, Pardais

205. Adília Lopes, Pardais

Maria Madalena Quintela

O ouvido mais atento terá notado a falta cada vez mais gritante de um certo piar pelas ruas lisboetas: o dos pardais. Estes pássaros, antes considerados comuns, vão-se tornando uma raridade cada vez maior. A diminuição da população de pardais é aliás um problema que afecta várias partes do mundo, Lisboa não é caso único, e tem chamado a atenção da comunidade científica, levantando várias questões sobre o porquê do desaparecimento dos pardais, e possíveis soluções. O novo livro de Adília Lopes, Pardais, publicado em Julho de 2022, ambiciona imitar o piar e a fisionomia destes pássaros: «Gostava que os meus poemas fossem pardos, modestos, pequenos, lisboetas como os pardais e que tivessem o som do piar dos pardais» (p. 36).

204. James Elkins (ed.) Art History Versus Aesthetics

204. James Elkins (ed.) Art History Versus Aesthetics

Tiago Clariano

Art History versus Aesthetics tem por proposta contemplar as disciplinas da História da Arte e da Estética como duas ilhas que se avistam uma da outra e tentar analisar as formas de comércio que mantêm entre si. Este volume faz parte da colecção The Art Seminar. Cada livro tem a estrutura de um livro de actas de um congresso e começa com «Starting Points», depois segue-se a transcrição de uma mesa redonda, com a subsequente transcrição das folhas de sala dos participantes e dos espectadores e, no fim, alguns ensaios com tom de «Afterwords». Por causa dos seus intuitos conciliatórios, James Elkins esforça-se por reconhecer que existem pontos de contacto entre as disciplinas: que a sensibilidade estudada pela Estética está contaminada por conhecimento histórico e que as antologias resultantes de trabalhos em História da Arte são fruto de decisões baseadas em juízos estéticos. No fundo, se tivéssemos um registo dos movimentos comerciais entre as ilhas na abordagem de uma obra de arte, não se saberia de que ilha partiriam, nem a qual se dirigiriam.

203. Jarvis Cocker, Good Pop, Bad Pop: An Inventory

203. Jarvis Cocker, Good Pop, Bad Pop: An Inventory

James Dias

O primeiro livro de Jarvis Cocker é um memoir num sentido diferente do normal. Parte dos objectos que ele foi guardando num sótão durante 20 anos para memórias suscitadas pelos mesmos. Para mostrar estes objectos, Cocker faz uso de uma espécie de jogo com o leitor (e no qual a maioria das pessoas já teve de participar a dada altura da sua vida): decidir se vai guardar um objecto ou deitá-lo fora: «Até podemos fazer disto um jogo – chamemos-lhe “Guardar ou deitar fora”.»

202. Roman Polanski, Rosemary’s Baby

202. Roman Polanski, Rosemary’s Baby

Camila Lobo

«There are plots against people, aren’t there?»

Estamos no ano de 1968. Na América do Norte, e um pouco por todo o mundo, o movimento feminista ganha força. A cidade de Nova Iorque, em particular, é palco de protestos feministas sem precedentes. Se as New York Radical Women tomam conta das ruas em protesto contra noções tradicionais de feminilidade, articulando pela primeira vez o slogan «Sisterhood is Powerful», a National Organization of Women protesta contra a criminalização do aborto: «Nobody should legislate my rights to my body», lê-se no cartaz transportado por Kate Millet.

201. Uriah Kriegel (ed.) The Oxford Handbook of the Philosophy of Consciousness

201. Uriah Kriegel (ed.) The Oxford Handbook of the Philosophy of Consciousness

Inês Morais

The Oxford Handbook of the Philosophy of Consciousness is an excellent, very comprehensive survey and discussion of recent work in the philosophy of consciousness, with contributions from philosophers and neuroscientists, in the major aspects of an area with ramifications at least into epistemology, metaphysics, ethics, and aesthetics. I strongly recommend it.

200. Frederico Pedreira, Um Virar de Costas Sedutor

200. Frederico Pedreira, Um Virar de Costas Sedutor

Telmo Rodrigues

Numa ficção de cariz autobiográfico recente, A Lição do Sonâmbulo (2020), Frederico Pedreira parecia interessado nas consequências vinculativas de actos não intencionais (ou pelo menos na dificuldade de contar uma história pessoal que vacila entre a educação formal e a relevância constitutiva de actos aparentemente insignificantes). A dificuldade nesse Bildungsroman era articular a dissonância entre a relevância efectiva do trabalho intelectual e o peso que tem qualquer acção desligada desse esforço: jogar à bola num quintal é mais relevante para a formação de carácter do que as horas perdidas a ler Pessoa; mais difícil ainda é articular a relevância entre ler Pessoa sem compromisso e a inutilidade da mesma acção inserida num contexto académico:

Não sei se terá sido sonho meu, dado o prazer que sempre senti ao reler as páginas da pobre edição d’O Livro do Desassossego que o meu avô fizera questão de me oferecer, prazer esse que depois da odiosa obrigação escolar se fora tornando independente e crescendo ao longo dos anos de leitura canina (…) (A Lição do Sonâmbulo, p. 32).

199. Hunter Dukes, signature

199. Hunter Dukes, signature

Duarte Bénard da Costa

This volume on signatures of Bloomsbury’s collection Object Lessons springs from the research that Hunter Dukes, lecturer of English Literature at Tampere University, Finland, weaved during his years as a research fellow at Peterhouse, University of Cambridge. Something of cinematic mixes with something of academic in his journey throughout signatures. Short narratives merge with profoundly intellectual and cultural analyses which approach varying subjects, from the Lascaux caves to Zadie Smith, from John Donne and Oscar Wilde to U.S. President J. F. Kennedy and Orson Welles.

198. Anthony Grafton, The Footnote. A Curious History

198. Anthony Grafton, The Footnote. A Curious History

James Dias

Filipe Marques Fernandes

Publicado simultaneamente pela Harvard University Press e pela Faber and Faber, o livro de Grafton mergulha num campo de interesse historiográfico escassamente povoado e representa uma primeira tentativa de ensaio global sobre a origem da nota de rodapé, pretendendo colmatar as lacunas deixadas pelos estudos esparsos que compunham a bibliografia disponível. Desengane-se, contudo, quem pretenda encontrar neste tratado uma história geral da referenciação infrapaginal. A obra, que no presente ano cumpre 25 anos da publicação do texto original, contou com diferentes traduções, cujos títulos restringiram significativamente a abrangência do objecto, incrementando a sua especificidade. A organização da obra denuncia a intenção de traçar uma árvore genealógica da prática de anotação em rodapé. Grafton não procura oferecer um sistema fechado sobre a sua origem, mas antes conduzir o leitor num caminho inversamente cronológico através de uma estratificação temporal transposta para uma narrativa antológica, em que cada anedota conta um passo substancial no devir da nota de rodapé no campo da história.

197. Peter Salmon, An Event, Perhaps — A Biography of Jacques Derrida

197. Peter Salmon, An Event, Perhaps — A Biography of Jacques Derrida

Miguel Zenha

In Peter Salmon’s book, we are before a defense of Derrida as a philosopher since it

aims to set out the intellectual development of Jacques Derrida (…) argue for its importance in the history of philosophy. It will argue that Derrida is one of the great philosophers of this or any age; that his thinking is a crucial component of any future philosophy; that his thinking is immediately—always already—applicable to the world as we find it; and that this application has political heft. (p. 4)

196. William Shakespeare, King Lear

196. William Shakespeare, King Lear

Francisco Pina

João Garcia Miguel, encenador, performer e artista português, tornou-se ilustre pelas estratégias invulgares a que recorre para trazer as suas criações ao mundo do teatro. A forma como reorganizou e reformou textos clássicos concedeu-lhe um estilo artístico altamente característico que mostra genialidade e justifica a internacionalização do seu trabalho. É neste contexto que Garcia Miguel toma conta do Teatro Ibérico com um novo olhar sobre a adaptação de King Lear que lhe deu fama em 2006. «Entre 2006 e 2009 pegámos pela primeira vez num texto de William Shakespeare: King Lear. E dando-lhe um tom de arte popular e fazendo do rei um fingido cidadão e um clown experimental reconstruímos com dois actores as vinte e muitas personagens da peça original», lembrou o encenador na folha de sala.