Tiago J. Silva
Tornou-se comum entre vários críticos enfatizar a singularidade do lugar de James Gray no cinema contemporâneo. A sua posição é a de quem tenta fazer justiça a certas coisas que se julga terem desaparecido ao mostrar que a persistência delas no tempo pode afinal ser asseverada. Entre essas coisas está uma certa ideia de como se deve fazer filmes e de como se deve filmar pessoas. The Lost City of Z, tendo por base o livro homónimo de David Grann, corrobora certas opiniões sobre a obra do realizador ao mesmo tempo que torna claros os termos da sobrevivência do tipo de cinema que Gray quer defender.
Tiago Clariano
Lorde é a heroína pop da imperfeição: as suas canções não expressam o desejo de poder viver melhor, mas o de aproveitar o momento que se vive. Para ela, e de uma perspectiva estética, a imperfeição tem muito mais para oferecer do que qualquer concretização perfeita dos seus planos.
Sofia A. Carvalho
Era uma vez. E quem não se lembra da voz suave e hipnótica da avó a contar mais uma história para adormecer à sua neta de eleição? Eu não. Não sendo a vida um conto de fadas, e à semelhança do que este último esconde, aquela é feita de uma desarmante perversidade. Pois bem: o filme documental Paula Rego, Secrets & Stories, realizado pelo filho Nick Willing — exibido pela primeira vez no dia 25 de Março na BBC2, e cuja antestreia nacional foi a 4 de Abril na Fundação Calouste Gulbenkian, contando aí com a presença do realizador e da artista —, retrata isso mesmo. O conto de fadas em Paula Rego assume o tom de revolta de uma mulher-cão: contradictio in terminis assumida pela pintora, que surge retratada pelos filhos como um ser estranho — anjo perverso e vingativo — que possui algo de belo, mas talvez por isso intocável e intangível.
Nuno Amado
Depois da publicação da Obra Completa de Álvaro de Campos, em 2014, e da Obra Completa de Alberto Caeiro, já em 2016, a Tinta-da-China concluiu no final do ano passado a trilogia das obras integrais dos três principais heterónimos pessoanos com a Obra Completa de Ricardo Reis. De acordo com os editores, Jerónimo Pizarro e Jorge Uribe, os propósitos desta edição eram os de dar a ler «um Reis mais bem decifrado, mais completo e mais diacrónico» (p. 17). Os principais méritos desta edição são indissociáveis destes três propósitos.
João N.S. Almeida
No final da segunda temporada de Twin Peaks, o último episódio era constituído em grande parte por uma sequência já não onírica mas sobrenatural, ancorada no mundo real do enredo, onde uma personagem dizia ao protagonista que se voltariam a ver passados vinte e cinco anos. Esta terceira temporada surge depois desse intervalo de tempo, mas nada disto é necessariamente premeditado em Lynch. Na criação do enredo da série, os elementos narrativos são dispostos como pontas soltas que se vão completando conforme as circunstâncias o sugerirem, não só aquelas inerentes à criação artística mas também as exteriores, tal como as reacções do público e as pressões do formato e do meio. Alguns elementos acabam por permanecer non sequitur, outros adquirem uma importância que transcende o micro-enredo e atinge o patamar de veículo principal da trama. Isto é feito em modo de fluxo de consciência, técnica recuperada da pintura do expressionismo abstracto, onde Lynch se formou, mas já presente em tradições anteriores. A primeira e segunda temporadas da série foram construídas dessa forma, onde se juntavam elementos obtidos através de inspiração e improvisação, ligados ao fio principal do enredo por critérios estéticos ou até esotéricos, e não tendo necessariamente como fim uma conclusão da trama policial. A revelação forçada do assassino, a meio da segunda temporada, «matou a galinha que punha os ovos de ouro» e deixou o enredo à deriva, procurando outros fios narrativos improvisados sob pressão. Foi este o ponto em que a série foi interrompida e agora retomada.
Maria Rita Furtado
Ao abrir A Gorda, o primeiro romance de Isabela Figueiredo, além de epígrafes que poderiam ser consideradas comuns, na medida em que são excertos de textos, deparamos com uma «epígrafe sonora». Tal epígrafe não consiste em citações de letras de músicas, como se poderia esperar, mas antes numa lista de nomes de artistas e de títulos de músicas, ordenados cronologicamente. A lista é tão variada que não pode deixar de surpreender: ver nomes como Lou Reed e Ornatos Violeta ao lado de Abba e Amor Electro não é coisa habitual. A primeira curiosidade que o livro despertou foi, portanto, perceber o que faziam «Language is a Virus», de Laurie Anderson, e «Amanhã é Sempre Longe Demais», dos Rádio Macau, na mesma página, uma vez que não parece que a escolha das canções tenha sido acidental. Assim, foi preciso pensar nas letras das músicas e tentar descortinar o denominador comum: quase todas descrevem amores infelizes e todas contam histórias de vidas que ficaram por viver, pelas mais variadas razões. E é disso que Isabela Figueiredo nos fala: da vida não vivida de Maria Luísa, a personagem principal de A Gorda, mas também, e acima de tudo, da vontade que ela tem de a viver.
Maria de Almeida Alves
Em 1985, estreia Brazil, filme que conta com três argumentistas: Terry Gilliam — que o realiza —, Charles McKeown e Tom Stoppard. Recentemente reposto em dois cinemas lisboetas, é apresentado enquanto Brasil: O outro lado do sonho. Inusitadamente, dadas as traduções imaginativas a que nos vimos habituando nas salas de cinema portuguesas, o nome assenta-lhe. Submergimos num mundo desarrazoado, constantemente ameaçado por bombas ditas terroristas, no qual um regime totalitário se impõe através de uma máquina burocrática computorizada. Tendo presente a década em que o filme foi realizado, percebe-se que as máquinas de escrever façam parte do elenco, e, como tal, estejam lá quando uma barata esvoaça pela sala e é espalmada no tecto por um dos burocratas, caindo numa das máquinas e esborratando um nome que, de «Tuttle», passa a «Buttle», cumprindo a devida vénia a Kafka.
Tomás N. Castro
As telenovelas são um passatempo nacional que conta já com quatro décadas de história. Apesar da «baixeza de cultura» e da «fraqueza dos diálogos» — críticas sempre pertinentes das altas esferas da intelectualidade pátria —, a televisão generalista (descontando, por isso, o cabo) emite uma média de 2500 horas anuais destes produtos sucedâneos do folhetim oitocentista. Tomando as audiências de um dia ao acaso (19/04/2017), na relação dos cinco programas mais vistos encontramos, por ordem crescente do número médio de espectadores: duas telenovelas (c. 800 mil), um telejornal (c. 1 milhão) e outras duas telenovelas (c. 1,2-1,3 milhões; numa lista das 20 telenovelas mais vistas em Portugal desde o início deste século, os valores diários oscilam entre c. 1,1-1,6 milhões; vd. pp. 109-112). Tudo isto num país em que um livro que venda mais de 10 mil exemplares é considerado um bestseller (contra os 30 mil anteriores ao actual decréscimo das tiragens).
Lauro Reis
Para alguém familiarizado com literatura japonesa, o nome de Matsuo Bashô não acarretará novidade alguma; a sua obra poética continua a despertar curiosidade e a influenciar o curso poético japonês séculos após a sua vida (Bashô nasceu em 1644 e faleceu em 1694). Todavia, o interesse pela sua obra não se concentra somente em território nipónico: apesar do distanciamento temporal e idiomático, Bashô é traduzido hoje em quase todos os continentes. No que toca à presença de Bashô no contexto português, é fundamental destacar a clareza e consistência desta versão portuguesa da sua obra: perante todas as disparidades linguísticas, hermenêuticas e/ou culturais (discutidas, debatidas e esmiuçadas eternamente pelo e além do ofício da tradução), Joaquim M. Palma (doravante JMP) contribui para a divulgação de um poeta que se tem difundido para além das fronteiras geográficas, linguísticas e culturais de onde emergiu, ao transpor para português a obra completa de haikus, juntamente com as respectivas notas, glossários, contextualizações e esclarecimentos técnicos.
Marana Borges
Todorov (Sófia, 1939 – Paris, 2017) foi um homem que acreditou em outros homens. Um esperançoso, diriam alguns. Ou um humanista. Talvez por isso tenha aos poucos migrado da Literatura — campo em que se consagrou ao traduzir os principais textos do formalismo russo do início do século XX — para a Antropologia, a História das Ideias e a Política: parecia fazer um acerto de contas com sua juventude na Bulgária comunista, dispondo-se a criticar os totalitarismos e a examinar outras formas de conviver em sociedade. Sua aposta pela busca da justiça, em última instância, encurralaria os Estudos Literários em uma dimensão moralmente edificante.
Pedro Tiago Ferreira
Filosofia do Direito, de Reinhold Zippelius, é uma obra naturalmente dirigida a juristas, mas que convoca problemas que interessam a filósofos em geral, e não somente àqueles que reflectem especificamente sobre o Direito. Para além disso, o facto de ser uma obra redigida de uma forma muito clara é um factor de interesse para quem, não sendo jurista nem filósofo, procure uma obra de introdução ao pensamento jurídico que não coloque as habituais dificuldades da linguagem técnico-jurídica que, muitas vezes, se revela hermética para os não-juristas, funcionando como elemento de dissuasão à busca, por parte destes, da compreensão das mais elementares questões de filosofia do Direito.
Paulo Nóbrega Serra
Os navios da noite é o último livro do autor João de Melo (se não considerarmos a reedição de Autópsia de um mar de ruínas, reescrita pelo autor e publicada em 2017), e reúne 18 contos inéditos, contos esses que por vezes, dada a sua extensão, mais se aproximam da novela. O autor costuma, aliás, alternar na sua produção escrita a prosa de grande fôlego e livros que reúnem narrativas mais breves mas que partilham da mesma qualidade de uma prosa poética, ao mesmo tempo que procura reflectir sobre certas questões da contemporaneidade.
Sofia A. Carvalho
Sim, é possível que hoje já não existam canções de amor. É possível que o medo trave o mundo e os seus encantamentos. É possível que nada se revele superiormente belo e triste. É possível que os jericos deixem de ver a Deus. É possível que cessem os momentos de graça e abunde a estupidez. É possível que os anjos não se revoltem e os demónios jejuem. Mas nada disto acontece em One More Time With Feeling, documentário de Andrew Dominik sobre o processo de gravação de Skeleton Tree (2016), o mais recente álbum de Nick Cave. Esta espécie híbrida de documentário, que chegou em DVD a Portugal a 7 de Abril do presente ano com o acréscimo de três curtas-metragens, exige, pela sua natureza peculiar, uma nova abordagem: o que me importa explicitar e explorar é, de facto, a sua natureza complexa e contraditória. Fá-lo-ei a partir das noções de amor e protesto, dois aspectos que percorrem toda a produção musical de Nick Cave e que surgem negligenciados pela crítica.
Tatiana Faia
Artful e The Foreigner, tendo objectos tão distintos, têm em comum uma série de ideias. Ambos exploram as relações entre deslocamento e identidade, ambos se baseiam na suposição de que há um paralelo entre o modo como a realidade (social e privada) e a natureza mais elementar das artes miméticas operam os seus significados. E ambos procuram pensar de que forma as perspectivas que estão em jogo na criação e apreensão de certas formas de arte são um mapa para ler o real. Ambos, em última análise, sugerem que experiências de deslocamento são vitais para o modo como as nossas vidas fazem sentido.
Ana Cláudia Santos
Uma das premissas de Mémoire de fille, o livro mais recente de Annie Ernaux, é a de que este levou quase sessenta anos para poder ser escrito. O livro é a memória da «rapariga de 1958» (p. 17), que Annie Ernaux diz ter tentado esquecer: ela aos dezoito anos. Além de nunca a ter conseguido esquecer, a escritora francesa cedo se apercebeu da necessidade de escrever sobre ela. O «projecto 58» (p. 17) rapidamente se esboça, mas até à sua concretização, com Mémoire de fille, Annie Ernaux publica mais de uma dezena de livros, em que faz silêncio sobre os acontecimentos do Verão dos seus dezoito anos. Saber que relação existe entre os acontecimentos e o silêncio é talvez menos interessante do que reconhecer a importância do «projecto 58» para Annie Ernaux — isto é, reconhecer a sua crença na verdade daquela rapariga e a importância dela para a sua vida de escritora.
David Antunes
Este livro reúne, revistos e ampliados, vários ensaios sobre Fernando Pessoa e um texto sobre Teixeira de Pascoaes, anteriormente publicados pelo autor, resultando numa composição final de sete capítulos, precedidos de uma nota introdutória e seguidos de bibliografia e índices. A disposição estrutural dos capítulos é tudo menos desprovida de significado, bastando considerar, por exemplo, a centralidade do Capítulo IV sobre Pascoaes e a natureza conclusiva do último capítulo, «Livro do Desassossego», no qual se considera que o Livro, de Bernardo Soares, «é parte do propósito sistémico de estabelecer as condições iniciais da Literatura» (p. 157). Igualmente notório, se tivermos em consideração os títulos anteriores destes textos (cuja proveniência é referida no final do volume), é um certo laconismo na nomeação de cada capítulo — Alberto Caeiro I, Alberto Caeiro II, respectivamente capítulos II e III —, com excepção do primeiro: «A impessoalidade e o “Dia Triunfal” de Fernando Pessoa». Estes aspectos, em particular o primeiro, são relevantes porque, sendo clara a autonomia relativa de cada capítulo, herdeira de um passado editorial independente, é, porém, especialmente evidente o carácter assertivo da tese de António Feijó e a progressão cumulativa de um argumento acerca daquilo a que o autor chama o «sistema de Pessoa» e o «sistema de Pascoaes».
Alda Rodrigues
Em resposta à recensão publicada em http://formadevida.org/recensoes/99-henry-david-thoreau-2016-walden-ktaadn-pedro-madeira, assinada por Pedro Madeira (doravante identificado por meio das iniciais PM), começarei com um comentário geral sobre o âmbito da edição discutida (I), seguindo-se um esclarecimento ponto por ponto sobre questões de tradução (II), pela ordem com que são abordadas na recensão.
Pedro Madeira
Pouco antes de entrarmos no ano em que Henry David Thoreau completaria duzentos anos, a Relógio D’Água lança uma nova tradução de Walden, por Alda Rodrigues. Esta publicação importante é também oportuna. Não tanto por assinalar a efeméride, mas sobretudo porque se acumulam os sinais de que Thoreau, que até há muito pouco tempo esteve ausente, ou quase, do panorama editorial português, está hoje na moda em Portugal.
Nuno Amado
A dada altura de A Doença, o Sofrimento e a Morte entram num bar, Ricardo Araújo Pereira define o seu trabalho de humorista como o «ofício de fazer desfeitas ao mundo» (p. 33). À luz desta definição insólita, o humorista supremo seria aquele que passasse a vida a desfeitear o mundo. É essa, aliás, a ambição do protagonista de Jacques, o Fatalista, tal como se percebe pelo exemplo de que RAP se serve, no último capítulo do livro, para justificar a ideia de que o riso tem o poder de subverter o medo da morte. Se tivesse conseguido «troçar de tudo», o protagonista da obra de Diderot ter-se-ia livrado de todas as «preocupações», não teria «necessidade de mais nada» e tornar-se-ia «perfeito senhor de mim mesmo» (p. 106). Ora, o auto-domínio e a auto-suficiência nos quais consistiria o triunfo sobre o mundo desejado por Jacques são talvez as características mais distintivas da figura do sábio, tal como ela é pensada ao longo de toda a tradição filosófica ocidental. Uma ideia importante a reter é, pois, a de que humor, para RAP, é uma forma de sabedoria.
Lauro Reis
Depois de quase três décadas de avanços e recuos, Martin Scorsese concretiza finalmente o projecto que havia idealizado depois de realizar A Última Tentação de Cristo (1988). Silêncio (2016) é uma adaptação do livro homónimo de Shusaku Endo, escritor japonês cristão, publicado em 1966. Esta adaptação cinematográfica reproduz fielmente a narrativa do romance epistolar de Endo: após saber que o seu mestre, o padre jesuíta Cristóvão Ferreira, havia apostatado, renunciado à sua fé em público pisando uma figura de Cristo (fumi-e), e recomeçado a sua vida como um japonês, os seus discípulos, padres Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe, não acreditando em tais rumores, partem para o Japão em busca de respostas. Esta é a premissa de um filme que se destaca pelo contraste entre a claridade de execução cinematográfica e a sua ambiguidade temática: a duplicidade do silêncio como abandono ou aproximação a Deus.