Guilherme Berjano Valente
O Pior é Que Fica (2023), de José Maria Vieira Mendes, é um livro que tem um prefácio e sete capítulos (cada um é uma peça teatral). Estes, que numa primeira leitura parecem estar ligados, apenas, tematicamente – questões de finitude, de materialidade, etc. –, quando relidos de acordo com a forma apresentada na contracapa – «o livro inclina a literatura dramática para a leitura em voz baixa» –, levam-nos a considerar a obra como um romance, começado com o nascimento de uma frase, prolongado através da sua luta em relação à sua finitude, e terminado num suspiro que a esvazia de dores e complicações.
Tiago Ramos
No prólogo de Letter from an Unknown Woman (Max Ophüls, 1948), Stefan Brand é desafiado para um duelo no qual não tem a intenção de participar. O seu plano é fugir da contenda. Porém, o seu mordomo, John, entrega-lhe uma carta por assinar que o fará encarar as suas responsabilidades. Stefan abre o envelope, retira a carta e antes de a começar a ler lava o seu rosto. Há uma ênfase no gesto de limpar a vista. De seguida, a personagem aproxima-se da secretária e ilumina a divisão em que se encontra, adensando, deste modo, a sequência de acções que figuram a ideia de que Stefan está a preparar-se para vislumbrar o seu passado com clareza. A leitura da carta por parte de Stefan convoca a voz de quem a escreveu. Esta é uma convenção no cinema, a de que a leitura de um documento desponta na mente do leitor a voz de quem o escreveu. A questão é que Stefan desconhece, naquele instante, a identidade da remetente, porquanto a carta não está assinada, o que desestabiliza esta convenção narrativa e confere à voz feminina que enuncia o texto uma qualidade misteriosa. Lisa, a mulher que redigiu a carta e se dirige a Stefan, manifesta-se primeiro enquanto uma voz sem corpo. A sensação é de que as palavras de Lisa, às quais temos acesso por meio da voz-sobreposta, são o murmúrio de um fantasma. As palavras que escreveu confirmam a sua condição fantasmática: «Quando leres esta carta, talvez já esteja morta... Se isto chegar até ti, saberás como me tornei tua quando não sabias sequer quem eu era ou sequer que existia.»[1]
Maria Brás Ferreira
Mais do que um ensaio sobre a relação - de contornos e ambição evolucionistas - entre o Humano e a Natureza, como num instante preliminar se poderia supor, Ensinar uma Pedra a Falar, de Annie Dillard, recém-editado pela Antígona, numa tradução de Inês Dias, constitui um texto sismógrafo acerca da experiência assombrosa que distancia, mas igualmente coloca numa tensão afectiva-criativa, os dois planos existenciais - entenda-se, plano cultural e natural -, intervalados a partir de um princípio ficcional, por oposição a um princípio metódico-científico. Seria, porventura, algo cínico procurar definir uma totalidade natural com base na experiência que o ser humano da mesma natureza retira, ainda que à primeira reconhecendo o estatuto da primordialidade. E, todavia, parece haver uma pulsão, essa, já referida, propriamente narrativa e ficcional, que impele o sujeito pensante a conceber o meio envolvente como uma dádiva para as suas projecções inventivas, criações imaginárias, ciente dessa invenção posterior, e não apenas como universo secundarizado, conforme a um ponto de vista solipsista, viciado e limitador. São as palavras - e neste livro quase tudo, ou pelo menos o melhor, pertence à ordem texturada da dicção - exemplos pontuais de uma relação imaginativa e, dessa feita, à partida desvirtuada, isto é, sem praticabilidade alguma que não constitua o seu próprio desvio, não obstante por isso mesmo se trate de uma relação vital. Ou para cujo reconhecimento não importa tanto a asserção de uma verdade, mas sobretudo o consolidar, a rimar com essa espécie de liberdade conquistada, da experiência, e desta traduzida em palavras, como memória futurante.
Miguel Zenha
Se quisermos escolher o motivo de Lúcialima, «empatia» será uma opção adequada. Ou então, como versões daquele sentimento, dedicação e perseverança. Ora, empatia opera em Lúcialima de maneira particular: não se deixando confundir com paternalismo, dá-se a conhecer como atenção a experiências, hábitos e convicções. Mostra-se desajustado pensar em vilões ou heróis em Lúcialima, o que não significa que as personagens sejam uniformes, planas ou sucedâneas umas das outras. Significa, pelo contrário, que este livro não oferece juízos morais peremptórios, uma vez que não se rege por um ânimo doutrinário demarcado. Lúcialima configura diferenças entre pessoas e contextos — entre experiências ou vivências — se bem que convergindo num traço especialmente saliente: o romance é atravessado por uma certa solidão. No fim de contas, empatia é um modo de lidar com a perda — com o falhanço de algumas crenças fruto do peso exercido pelo passado — sem, contudo, lançar mão de expedientes existencialistas, comiseração ou gáudio boçal. É, por isso, a recusa da mera melancolia, bem como de uma tendência desapiedada e fatalista de olhar para a realidade.
Tiago Ramos
Em 1543, Andreas Vesalius publicou De Humani Corporis Fabrica, um atlas anatómico que contribuiu para o avanço da medicina e para a institucionalização da prática da dissecação, na época um exercício proibido pelas ordens religiosas europeias. O compêndio está dividido em sete livros, cada um dedicado a uma parte do corpo humano, como sejam o sistema digestivo ou circulatório. O texto é acompanhado de xilogravuras que representam a parte do corpo alvo de investigação. No entanto, embora as gravuras tenham o desígnio científico de retratar o interior do corpo humano tal como este nunca tinha sido retratado, as ilustrações de Vesalius também têm uma preocupação artística. As representações são adornadas de elementos paisagísticos e os corpos são ilustrados em poses simbólicas. Esses traços não possuem qualquer utilidade científica, antes apontam para uma preocupação estética. Então, conclui-se que existe uma união entre o engenho artístico e científico. Sem a conciliação desses desígnios aparentemente opostos a obra de Vesalius não existiria com os contornos que tem, dado que foram os progressos verificados durante o Renascimento, no que à representação pictórica diz respeito, que lhe permitiram retratar o corpo humano com precisão científica.
Helena Craveiro
Guilherme Berjano Valente
Gostamos deste livro porque tem comentários a poemas que nos fizeram começar a gostar desses poemas. Gostamos dele, também, por ser um livro escrito por pessoas que gostam de passar tempo a pensar sobre poesia.
Sara de Sousa
Outros Celtas: Celtismo, Modernidade e Música Global em Portugal e Espanha, publicado em dezembro de 2022 pela Tinta da China, surge como uma simbiose necessária entre etnomusicólogos e antropólogos, na sua maioria membros do projeto de investigação «O Celtismo e as suas repercussões na música da Galiza e no Norte de Portugal».[1] Sendo fruto desse trabalho, esta cuidada edição bilingue vocaliza o seu propósito, nomeadamente, o de ampliar a consciência do celtismo além do áxis arqueológico, através da sua influência como intercâmbio comercial e vetor identitário dentro da Península Ibérica.
Telmo Rodrigues
No Apêndice C de Os Livros de M. S. Lourenço, de João Dionísio, reproduz-se «o catálogo da exposição dedicada aos livros de M. S. Lourenço, que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa […] nos dias 4 a 21 de maio de 2011» (p. 163).
Miguel Zenha
O primeiro dos três volumes que coligem a obra poética de Manuel de Freitas — o segundo saiu entretanto em Abril deste ano —, Levar Caminho I inclui os seguintes livros: Todos Contentes e Eu Também; BWV 244; Os Infernos Artificiais; Game Over; Isilda ou a Nudez dos Códigos de Barras; O Coração de Sábado à Noite e, finalmente, [Sic].
Maria Brás Ferreira
De Jean-Pierre Martinet, autor inédito em Portugal, e com tradução de Diogo Paiva, foi recentemente publicado, pela editora Cutelo, A Grande Vida. Um romance que não pode ser outra coisa senão romance, ainda que a sua extensão curta aponte imediatamente para o género da novela, uma vez que o último reduto da sua expressão e intempestividade reside no mais cerrado dos sarcasmos. Por um virtuosismo propriamente romanesco, esse de fazer associar o que está votado a ser escatologicamente baixo, vil, a um tom grandiloquente, por efeitos cénicos produzidos ao longo do texto, ao leitor quase apetece dizer tratar-se do romance, por excelência, da miséria, e do abjecto, atribuindo-lhe um valor não só singular, como exemplar. O sarcasmo que inequivocamente acentua o título prescreve, de imediato, um tal recurso estilístico (é um texto pouco dado a virtuosismos literários) — é precisamente assim que o título se valoriza e adquire um tom próprio e excepcional —, preferindo-se uma escrita terrivelmente objectiva, sóbria, mesmo nos momentos tangenciais da auto-depreciação ao ponto da escatologia, no duplo sentido do termo. Um descaramento incisivo, como o parto «sobre si mesm[o] como um feto monstruoso» (Martinet, 39), na descrição do sujo, do mau e do desprezível. É a clareza discursiva que imprime o último reduto da miséria: a concessão, a pena (no sentido da sentença, jogando com esse outro do tema cristão da piedade) e o crime últimos, da piedade como linguagem esgotada e/ou iconologia que já não pode dizer-nos respeito. A piedade remetida à medida de um desajuste em face da obscenidade intrínseca à própria vida, até à indiferenciação e ao absurdo caricaturais, em sinal dos quais irrompe o riso como o ânimo em negativo de uma vontade distorcida ou simplesmente ausente: «Foi por volta do fim do mês de Agosto que o drama rebentou. Digo drama, mas não é a palavra certa. Não existe drama entre nós, senhores, nem tragédia, apenas burlesco e obscenidade. Não somos felizes, mas fartamo-nos de rir. Com sorrisos amarelos, claro, mas enfim.» (idem, 41).
Guilherme Berjano Valente
Ice Merchants (2022), de João Gonzalez, destaca o carácter confortável e seguro que nasce das nossas rotinas e dos nossos hábitos. Neste filme, um pai e um filho vivem numa montanha envolta em gelo, numa casa que se segura a uma das suas encostas através de cordas. Como o nome do filme indica, são vendedores de gelo: tendo em conta o frio do local em que se encontram, congelam água e partem-na em pedacinhos para a vender. Ao partirem o gelo, recolhendo-o para venda, saltam com um para-quedas de modo a chegarem à aldeia mais próxima. Quando vendem tudo, recolhem-se para casa, subindo a encosta com um elevador manual – uma mota estagnada que, ao ser acelerada, os puxa para cima. Todos os dias, quando saltam, os seus gorros voam-lhes da cabeça, acabando por desaparecer na imensidão do ar. Percebemos que existe um grau de conforto nesta rotina tanto por repetirem-na, como por não temerem aquilo que os rodeia: uma grande queda e uma encosta de montanha. Isto torna-se ainda mais claro com a criança a andar de baloiço sobre o vazio, durante grande parte do dia, mostrando que a queda e o perigo não fazem parte da sua conceção de andar de baloiço sobre o abismo. Desta repetição quotidiana, nasce um sentimento de segurança e de conforto nas personagens, tornando o espaço à sua volta, aparentemente perigoso, num espaço sem perigos para os que o habitam.
Lourenço M. Veiga
No primeiro dia da 29ª edição do festival Música Viva, que decorreu no O’culto da Ajuda, foram tocados seis concertos. O festival tem como grande objectivo a divulgação de música erudita contemporânea, principalmente composta em Portugal. Com efeito, os concertos foram todos interpretações (pela Sond’ar-te Electric Ensemble) de composições de artistas portugueses. Duas dessas composições tiveram a sua estreia absoluta neste dia.
Joana Corrêa Monteiro
Controversies around the work, nature and purposes of universities have been around for some centuries, and even if settings, contestants and pretexts often change, the main ideas and opinions put forward are usually variations of the same set of basic claims, arguments and questions. The last decades are no exception and, from time to time, either because some scandal makes the headlines, or because more, or less, funding is allocated to, or cut from, some specific knowledge field or institution, or for countless other circumstantial reasons, universities and those working in them have had to explain their views on what they are, what they do, and why that which they do is worth doing. Even if, as has been noted, the clear majority of those engaging in these discussions has attended universities, usually good ones, and it would make sense to expect they are in the best possible position to know what the essence and purpose of a university is, the truth is this does not seem to be a settled matter.
Madalena Simões Leitão
Muitos foram os movimentos que trataram de contestar a ideia da mulher frágil e reprimida, limitada ao espaço da sua casa. Mas esta é a ideia da mulher branca, de uma classe específica. De parte, são colocadas as mulheres negras, indígenas, asiáticas, africanas, mulheres menosprezadas ao longo da narrativa europeia, «consideradas animais no sentido de seres “sem gênero”, marcadas sexualmente como fêmeas, mas sem as características da feminilidade.» (Lugones, 74) A luta contra este desprezo e abandono será então feita através de uma ruptura com os ideais de um feminismo hegemónico e do crescimento do feminismo decolonial.
Pedro Franco
In a section of an episode of the second season of The White Lotus (episode 6: “Abductions”), a young lad from Essex and a Californian au pair of sorts find themselves sitting idly at a dock in sunny Sicily, drinking beer and eating ice cream. They are having a meaningful, yet unusual discussion given the superficial relationship they entertain: Portia, the Californian girl, is wondering whether her friend Jack has any “goals”, to which he responds with perplexity: what does she mean by that? Portia’s blurry conception of a life goal seems rather unsatisfactory: “Be satisfied. That’d be nice.” Her desire to be one level up is contrasted by Jack’s one-day-at-a-time kind of attitude. Jack’s carelessness is (perhaps artificially) grounded on the impossibility of controlling the future, whether one will continue to live tomorrow or not, and then the debate shifts to a fundamental disagreement about the state of the world: while Portia thinks that the world is a “fucked up place”, Jack à-la-Pangloss thinks we live in the best one possible. After all, humans live in the greatest planet in the universe, and it is a miracle that we have survived centuries of mutual destruction, he says.
Teresa Líbano Monteiro
Törless, protagonista de As perturbações do pupilo Törless (1906), de Robert Musil, levou muito a sério a célebre admoestação do templo de Apolo, em Delfos – «conhece-te a ti mesmo». A narrativa tem, contudo, lugar no prestigiado internato de W., localizado numa zona longínqua do império austro-húngaro, milénios decorridos desde a citada injunção délfica. É neste microcosmo que o jovem pupilo procurou conhecer as zonas mais insondáveis de si, não olhando a meios para atingir este fim. Assim, ainda que nos seja apresentado como um rapaz sensível, Törless tem um papel não despiciendo na intriga principal do livro, o martírio de Basini.
Guilherme Berjano Valente
Há coletâneas de poesia e há livros de poesia. Enquanto o primeiro tipo se destaca pelo seu valor antológico, servindo de espaço de encontro a vários poemas de um só autor ou de vários, o segundo possui um cuidado edificado, no qual cada poema tem um papel instrumental na estética e na filosofia transmitida: alguns exemplos mais notáveis serão O Guardador de Rebanhos[1], de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) ou Fervor de Buenos Aires[2], de Jorge Luis Borges.
Teresa Líbano Monteiro
O roman à clef Ordens Menores, no qual José Régio figura sob o nome de Natan[1], pode ser lido como uma importante chave hermenêutica para outros dois textos de Agustina Bessa-Luís sobre o autor vilacondense: o artigo «Passagem sem ornamento» (Bessa-Luís, 1984) e o conjunto de cartas que a autora trocou com o seu reservado amigo (publicadas no pequeno volume Correspondência Agustina-Régio (1955-1968) [Bessa-Luís, 2014]). Com efeito, ganhamos muito, enquanto leitores, em ler o romance como uma tentativa de a autora de Fanny Owen desvendar a personalidade esquiva de José Régio, que tantas vezes se lhe ocultava nessa mesma correspondência. Na restante obra, o escritor d’A Velha Casa é igualmente enigmático: como afirma António Feijó, há uma constante vigilância por parte do autor para se resguardar do leitor[2], e esta autovigilância é sentida mesmo em livros tão escabrosos, pelo impudor sexual, como O Jogo da Cabra Cega. Opinião similar é a de Eugénio Lisboa no estudo José Régio ou a Confissão Relutante (Lisboa, 1988), no qual desenvolve o argumento de que os livros de José Régio vivem de uma vontade de confissão; esta raras vezes se concretiza[3], mas é justamente desse estado latente, simultaneamente desgastante e fértil, que vive a obra do autor d’As Encruzilhadas de Deus.
Pedro Franco
Susan Sontag reflectia em 2003, no pico da «guerra ao terror», que a aparente insensibilidade que resulta da exposição excessiva a imagens de miséria e violência esconde, afinal, uma enorme dose de raiva e frustração, a que não somos capazes de dar vazão.[i] Poderíamos dizer que é desta camada escondida que surge, nos antípodas do torpor e da anestesia, a hipocondria moral, um fenómeno característico da nossa época, a que não é alheia a consolidação da pequena burguesia ou, em termos porventura menos carregados de ideologia, das classes médias. E, por isso, não é estranho o teor psicanalítico desta ideia (a popularidade da psicanálise é, também ela, um fenómeno burguês ou de classe média). É, portanto, neste espectro social que se situa a disquisição dos filósofos Natalia Carrillo (filósofa da ciência da Universidade de Viena) e Pau Luque (filósofo do direito da Universidade Nacional Autónoma do México), no ensaio que acabam de publicar pela Anagrama.
James Dias
Em 2003, Laurinda Bom publicou um livro que, até há pouco tempo, era o que mais se aproximava a um livro de entrevistas dadas por Alexandre O’Neill, intitulado Alexandre O’Neill. Passo Tudo pela Refinadora. Para além de duas entrevistas concedidas a Adelino Gomes e Joaquim Furtado em 1983, Bom organizou algumas das respostas de O’Neill por temas, como «Poesia»; «Surrealismo»; «“Parentela” poética»; «Publicidade»; «Sociedade e consumo»; «Crítica»; «Vária». O maior problema com esta organização é que se parece mais com um conjunto de ditos de O’Neill, do que com uma reunião de conversas.